Gramsci e os policiais (por Mario Sabino) – Heron Cid
Bastidores

Gramsci e os policiais (por Mario Sabino)

14 de setembro de 2019 às 12h00 Por Heron Cid

Há uma velha piada italiana sobre o motivo que levava os policiais (carabinieri) a andar em trio:

“Você sabe por que os carabinieri estão sempre em três?”, perguntava o gaiato.

“Não”, respondia o interlocutor.

“Porque o primeiro sabe ler, mas não sabe escrever, e o segundo sabe escrever, mas não sabe ler”, devolvia o piadista.

Diante do silêncio que se seguia, o outro perguntava:

“E o terceiro?”

“O terceiro é para controlar esses perigosos intelectuais”, concluía o gaiato.

Eu ainda rio quando conto essa piada. À medida que os anos passam, no entanto, ela fica mais difícil de ser entendida, porque intelectuais são uma espécie em extinção ou quem sabe já extinta, ao passo que parece aumentar o número daqueles que sabem ler, mas não escrever, bem como dos que conseguem até escrever, sem conseguir ler. Agora os carabinieri andam em dois.

Os intelectuais são aqueles sujeitos que, por meio de muita leitura e discussão, tentam emprestar algum nexo causal entre os diversos aspectos da realidade, que vão do cultural ao sociopolítico. Eu os acho sempre interessantes, mesmo quando discordo deles. Escassos, foram substituídos por autores de teses universitárias bem específicas, fechadas em si mesmas e quase sempre desinteressantes. Os intelectuais, principalmente os perigosos, só sobrevivem como sombras entre ideólogos de esquerda e direita que gostariam de controlar quem sabe escrever, mas não sabe ler, e quem sabe ler, mas não escrever.

De uns tempos para cá, um dos intelectuais perigosos mais citados no Brasil é o italiano Antonio Gramsci. Os fascistas o colocaram na cadeia em 1926, dois anos depois o condenaram a duas décadas de prisão, e ele morreu de tuberculose em 1937, antes de completar a pena. Gramsci é classificado de perigoso porque seria o formulador do marxismo cultural — que, segundo os nossos ideólogos da direita, impregna as nossas escolas e a nossa arte. Li um pouco de Gramsci, e desculpe se hoje isso é considerado um crime. Pelo que entendi, Gramsci preconizava que, para mudar o sistema na direção da “filosofia da práxis”, como ele chamava o marxismo, era necessário que houvesse intelectuais orgânicos — nada a ver com comer alfaces ou morangos sem defensivos agrícolas. A organicidade, nesse caso, era tornar-se um agente político ativo mesmo depois da chegada da classe operária ao poder (como soa antigo…), para que estado e sociedade fossem transformados não apenas por meio das relações econômicas, mas pela hegemonia cultural — e os intelectuais orgânicos, obviamente, seriam fundamentais nessa tarefa. Desse ponto de vista, penso, a formulação de Gramsci valeria igualmente para a direita, com o sinal invertido. O capitalismo também precisa de hegemonia cultural, apesar da sua inegável superioridade sobre qualquer outro sistema já tentado na história (quando se fala em Gramsci, nunca é supérfluo dizer de que lado você está). É tão superior que  os seus intelectuais orgânicos são Nicolás Maduro, Raúl Castro e Kim Jong-un.

Uma das imagens de Gramsci é divertida, deixando-se de lado a falsidade da premissa. Ele dizia que todos os homens são intelectuais, mas não todos têm a função de intelectuais, porque fritar dois ovos ou costurar um rasgo no paletó em algum momento da vida não faz de alguém um cozinheiro ou um alfaiate. Poderíamos completar igualmente que ter trabalhado num torno mecânico dezenas de anos atrás não faz de alguém um eterno proletário. Ainda que, para Gramsci, o Partido Comunista devesse ser a encarnação de um moderno Príncipe à la Machiavelli, não o vejo fazendo apologia da censura ou da doutrinação pedestre a que se assiste desde há muito no Brasil. Hegemonia não implica aniquilação e sim preponderância. Acredito que Gramsci era um humanista na melhor tradição italiana, ainda que com o sentido errado da história. O seu marxismo era mais um idealismo, coitado. Foi, aliás, muito conveniente tanto para Mussolini quanto para Stalin que ele permanecesse — e morresse — na prisão, visto que não acreditava em repetições da revolução bolchevique. Gramsci era refinado demais para cultuar personalidades, e dificilmente acharia o condenado corrupto e lavador de dinheiro um guia dos povos. Pelo menos é o que suponho. Ler de verdade Dante Alighieri, Petrarca, Machiavelli, Leopardi, Manzoni, Pirandello e Croce deveria acarretar alguma imunização, mesmo quando se é marxista.

Gramsci tinha o dom da autoironia, o que não é pouco para um idealista, tenha ele as ideias certas ou equivocadas. Numa das suas cartas, escreveu, em tradução livre:

“Em Palermo, durante uma espera para a inspeção das bagagens, encontrei em um depósito um grupo de operários de Turim que iam para a prisão; juntamente com eles havia um tipo formidável de anarquista ultraindividualista, conhecido como Único, que se recusava a fornecer a qualquer um, especialmente à polícia e autoridades em geral, os seus dados: “sou o Único e basta”, eis a sua resposta. Em meio à multidão, o Único reconheceu entre os criminosos comuns (mafiosos) um outro tipo, siciliano (o Único devia ser napolitano ou de mais embaixo), preso por vários motivos, entre políticos e comuns, e passou às apresentações. Apresentou-me: o outro me olhou longamente, depois perguntou: “Gramsci, Antonio?”. “Sim! Antonio!”, respondi, “Não pode ser”, replicou, “porque Antonio Gramsci deve ser um gigante e não um homem tão pequeno”. Não disse mais nada, e se recolheu num canto, sentou-se e permaneceu, como Mario nas ruínas de Cartago, meditando sobre as próprias ilusões perdidas.”

Ninguém mais lê o baixote sardo, inclusive porque ninguém mais lê nada. O seu pensamento esteve na base da aceitação, por certa esquerda, da democracia como valor universal, não estratégico, como teima em pensar o PT, apesar de negar o fato. A aceitação foi relevante na metade final da Guerra Fria, mas perdeu a importância com a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética (onde Gramsci passou boa parte do tempo doente). Ele está morto, o marxismo está morto e ambos sobrevivem como fantasmas no cemitério de ideias da América Latina. Fantasmas podem ser ameaçadores, eu sei. Mas atualmente precisamos de, no máximo, dois carabinieri broncos para espantá-los. Não sei dizer até que ponto isso é bom ou ruim para a hegemonia cultural do capitalismo. Vou meditar nas ruínas de Cartago, como o general romano, e volto na semana que vem.

Crusoé

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