Estou em Portugal. Não física, mas intelectualmente. Em Portugal do século XVII. Ordenações Filipinas, Livro V, capítulo Dos que Abrem as Cartas Del-Rei ou da Rainha, Ou de Outras Pessoas:
“Qualquer que abrir nossa carta assinada por nós, em que se contenham coisas de segredo que especialmente pertençam à guarda de nossa pessoa ou estado, ou da rainha minha mulher, ou do príncipe meu filho, ou à guarda e defesa de nossos reinos, e descobrir o segredo dela, do que a nós poderia vir algum prejuízo ou desserviço, mandamos que morra por isso.”
El-Rei acrescenta:
“E os que abrirem as cartas de outras pessoas serão punidos segundo a qualidade das pessoas que as enviarem e a quem forem enviadas, e ao que nelas for conteúdo e da pessoa que as abrir.”
Eu mandaria um exemplar das Ordenações Filipinas para Walter Delgatti Neto, o estelionatário e hacker que agora é tratado como “estudante de Direito” pela Folha de S. Paulo. Só para mostrar como ele tem sorte de viver numa democracia — e leniente —como a brasileira, não numa monarquia absolutista ou “ditadura da República de Curitiba”, como quer fazer crer o afável ministro Gilmar Mendes, alfacinha de coração. Fosse pelo código legal português promulgado em 1603, por Filipe I, e que permaneceu em vigor até 1830, ele já estaria de língua para fora, pendurado pelo pescoço. Delgatti Neto, bem entendido.
Longe de mim sugerir que se volte a enforcar violadores de correspondência. Mas o que era considerado crime há quatrocentos anos por El-Rei de Portugal continua a ser crime hoje no Brasil independente. Vá lá na Constituição Federal, que norteia o Código Penal. Está logo no artigo quinto, inciso XII:
“É inviolável o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.”
O inciso X também é instrutivo:
“São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
Nada disso, contudo, vem sendo respeitado no caso da invasão do Telegram do procurador Deltan Dallagnol. Deve ser porque “gente ordinária”, como diz o gentil ministro Gilmar Mendes, merece ser expulsa do abrigo constitucional e tratada com certo relativismo, num eco das Ordenações Filipinas— “segundo a qualidade” de cada um. De qualquer forma, a Constituição Federal encontra-se momentaneamente suspensa, desde que El-Rei Dias Toffoli ordenou a instauração daquele inquérito sigiloso e ilegal que censurou a Crusoé por ter publicado uma reportagem baseada em documento público que desagradou a El-Rei — e me levou para a frente de um delegado da PF. As últimas de Brasília dão conta de que voltaremos ao Estado de Direito em dezembro, quando o inquérito sigiloso e ilegal chegar ao fim, se El-Rei não adiá-lo de novo.
A violação de correspondência e toda a sua vileza são o tema de um grande romance da nossa língua cada vez mais inculta e menos bela: O Primo Basílio, de Eça de Queiroz. Portugal, agora em 1878. Luísa, burguesa casada com o engenheiro Jorge, tem um caso amoroso com o Basílio do título, um dândi sem escrúpulos. A empregada do casal, Juliana, rouba uma carta de Basílio para Luísa e chantageia a patroa ameaçando publicá-la. Juliana faz-se de coitada, mas é rancorosa, acha que o mundo tem dívidas com ela. A descrição de Eça é terrível:
“A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hábito de odiar: odiou sobretudo as patroas, com um ódio irracional e pueril. Tivera-as ricas, com palacetes, e pobres, mulheres de empregados, velhas e raparigas, coléricas e pacientes; — odiava a todas, sem diferença. É patroa e basta! Pela mais simples palavra, pelo ato mais trivial! Se as via sentadas: — Ainda refestela-se, que a moura trabalha! Se as via sair: — Vai-te, a negra cá fica no buraco! Cada riso delas era uma ofensa à sua tristeza doentia; cada vestido novo uma afronta ao seu velho vestido de merino tingido. Detestava-as na alegria dos filhos e nas prosperidades da casa. Rogava-lhes pragas. Se os amos tinham um dia de contrariedade, ou via as caras tristes, cantarolava todo o dia em voz de falsete a Carta Adorada! Com que gosto trazia a conta retardada dum credor impaciente, quando pressentia embaraços na casa! “’Este papel! — gritava com uma voz estridente — diz que não se vai embora sem uma resposta!’ Todos os lutos a deleitavam — e sob o xale preto, que lhe tinham comprado, tinha palpitações de regozijo. Tinha visto morrer criancinhas, e nem a aflição das mães a comover; encolhia os ombros: ‘Vai dali, vai fazer outro, Cabras!’”
Juliana tem palpitações de regozijo quando lê as palavras amorosas de Basílio a Luísa. A chantagem tem lá prazeres extras. Imagino palpitar idêntico nas Julianas que conservam as mensagens de Deltan Dallagnol. É procurador da Lava Jato e basta! As Julianas estão livres da punição prevista pelas Ordenações Filipinas graças à democracia. Estão livres da Constituição Federal e do Código Penal graças à chantagem travestida de interesse público e liberdade de imprensa. Estão livres porque não temos um Eça de Queiroz para imortalizar o seu ódio irracional e pueril.
Precisamos ao menos de um Eça de Queiroz.
Crusoé