(São Paulo) – O dia nem raiou ainda. São 5h30. Do avião, cortando os céus desse imenso Brasil e sem sono para desligar, me ligo no dever de escrever sobre um assunto da política ou do cotidiano nesta manhã de terça.
E por que esperar o dia amanhecer? Saco o celular, esse generoso de mil e quase todas utilidades que “facilitou” a vida de todos os mortais. Ainda mais a nossa, a dos jornalistas, os sujeitos da terra mais tentados à presunção da imortalidade.
Com as luzes apagadas e muito ronco (não o das turbinas), daqui mesmo dessa apertada cadeira cumpro essa missão, dou uma satisfação, bato o ponto e – por fugir da análise política – já peço vênia “aos leitores possíveis”. Essa frase aspeada, confesso, é só para encaixar um jeito de invocar uma expressão de Rubens Nóbrega, que faz grande falta nesse exílio voluntário e silencioso das suas sempre precisas palavras.
Aí lembro das vezes que o professor Rubens, de quem fui privilegiado estagiário na UFPB, inspirou-me ainda antes de conhecê-lo e mais tarde estimulou-me na admiração a enxertar no meu jornalismo o exercício da palavra escrita.
Se me fiz no rádio, me refiz na TV, toco me refazendo na produção textual e digital, um prazer que disputa a tapas com a mágica das ondas moduladas e toma de assalto o frisson e frio na barriga da magnética.
Mas onde estava mesmo? Ah, citando Rubens, mestre no artesanato dos substantivos, vírgulas, pontos, na prosa escorreita, no diálogo franco e na sua poesia da lavoura jornalística.
Ao arrebatá-lo do deleite do merecido descanso nesta madrugada, importunando-lhe com essa transfusão mental, também desperto outros doutores na arte: Agnaldo Almeida, Nonato Guedes, Martinho Moreira Franco, Gonzaga… Matutinos por hábito, já devem estar todos acordados. Menos mal.
E o faço nessa Travessia aérea, de fones nos ouvidos quase moucos, bebendo em Milton Nascimento. Uns versos que vão e vêm zumbindo como se tivessem sido feitos para mim e ajustados para essa nova fase de vida e de ofício.
“Basta contar compasso/ E basta contar consigo/ Que a chama não tem pavio”, ensina-me “Clube da Esquina II”. Para os desafios, o conselho de “Maria, Maria”: “É preciso ter manha/ É preciso ter graça/ É preciso ter sonho sempre/ Quem traz na pele essa marca/ Possui a estranha mania de ter fé na vida”.
“Enquanto a chamar arder/ Todo dia é de viver”, instiga-me o “Amor de Índio”. E o encorajamento para “Nada a temer senão o correr da luta/ Nada a fazer senão esquecer o medo”.
No vidro embaçado da ‘janela lateral’, a não sei quantos mil pés, reconheço-me nos Encontros e Despedidas, quase em auto-retrato: “Coisa que gosto é poder partir sem ter plano/ Melhor ainda é voltar quando quero”.
Chegamos, o piloto avisou no alto-falante: “Tripulação: atenção para o pouso”! Eu respondo em pensamento olhando o sol entre nuvens na pequena fresta: “O trem que chega é o mesmo trem da partida”.
Por hoje está cumprido meu labor com você, que agora tanto se esforça para me ler. Agora vou descer e “Vou me encontrar longe do meu lugar/ Eu caçador de mim”. Porque – toca a última canção da minha playlist – “longe se vai sonhando demais”.