O inferno da servidão voluntária (Mario Sabino) – Heron Cid
Bastidores

O inferno da servidão voluntária (Mario Sabino)

25 de agosto de 2019 às 09h54 Por Heron Cid

Uma das vantagens de dormir pouco é que você lê mais — ou consegue ler algo que não seja jornal. Passei a acordar cedo, mesmo dormindo tarde, depois de fazer 55 anos. Talvez a causa seja o início da velhice. Parece que velhos dormem menos. Estranhamente, só durmo mais quando estou em Paris. Entro num estado de torpor permanente, e não é por causa de vinho. Talvez seja fruto da atmosfera socialista. Como já não vou mais tanto a Paris, o meu déficit de sono aumentou consideravelmente.

Sentei-me para escrever este artigo às cinco e meia da manhã, depois de ter dormido por volta de uma e meia e acordado às quatro e meia. Antes do meu sono noturno de três horas, engatei na leitura do novo livro de Laurentino Gomes: Escravidão — Do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal até a Morte de Zumbi dos Palmares. Se você já passou pela entrevista desta edição da Crusoé, já sabe que se trata do primeiro volume de uma trilogia a ser lançada totalmente até 2021. O fato de Laurentino ser o entrevistado de uma revista que criei é, além de uma honra, motivo de reflexão.

O meu tema não é o livro — prazeroso na forma jornalística, pleno na honestidade intelectual e ainda mais arrebatador no assunto do que 1808,1822 e 1889, igualmente essenciais para quem quer conhecer a história brasileira sem ter de passar por torturas universitárias e lavagens cerebrais ideológicas de quaisquer lados. O meu tema é o próprio Laurentino, de quem nunca fui amigo, mas colega de redação durante boa parte da minha longa encarnação na Veja. Pensando bem, no jornalismo, tem-se um amigo quando alguém não é seu inimigo.

Laurentino, o Lauren, não tinha propriamente inimigos na Veja. Mas era esnobado por gente que fica muito desperta em Paris. Para começar, Laurentino não era egresso da Libelu, o clube de elite trotskista que abasteceu as cúpulas das grandes redações jornalísticas nas décadas de 1980 e 1990. Ele também não agia como se pertencesse a uma casta superior, como outros integrantes da direção da revista. Laurentino não enfeitava com pesadas molduras sociológicas as reportagens que fazia ou editava. E cuidava das sucursais encarregadas de levar o Brasil profundo para as páginas da Veja, antes que todos nos déssemos conta de que o Brasil profundo está em todas as latitudes e longitudes do país. Por causa disso também, embora tenha sido autor e coordenador de grandes matérias, Laurentino era relegado na maior parte das vezes ao caderno da revista que fechava na quarta-feira, com assuntos considerados mais frios.

Apesar da qualidade e da quantidade da sua produção jornalística semanal, os seus bônus anuais (eu soube depois) eram menores do que os dos pares que escreviam uma página por semana ou faziam duas reportagens por ano que eram mais trololó do que jornalismo. Ele não fazia parte da patota. Chegara a editor-executivo porque seria simplesmente ridículo que um jornalista da sua competência e capacidade de trabalho não o fosse. Não conheço, por exemplo, ninguém que escreva mais rapidamente do que Laurentino — e só os que enfrentam fechamentos jornalísticos sabem como essa é uma qualidade e tanto. A quem expressava a admiração com a sua velocidade ao computador, ele simplesmente respondia: “fui digitador do Serpro”. Como se escrever dependesse apenas dos dedos.

No livro que um ex-diretor da Veja publicou sobre o período em que esteve à frente da revista, Laurentino foi alvo de sarcasmo, e teve o nome mesquinhamente omitido num trecho que versava sobre uma capa histórica da revista, datada de 1992, com a reportagem de sua lavra que revelava que o índio caiapó Paulinho Paiakan, venerado por militantes ecológicos, havia estuprado uma moça branca de 18 anos. Laurentino passou a ser justamente valorizado quando Tales Alvarenga assumiu a direção da Veja e o clube de elite trotskista foi despejado quase na totalidade. Tales acabaria por convidá-lo para dirigir a revista portuguesa Sábado, que havia sido lançada em sociedade com a Abril. A experiência em Lisboa, imagino, foi decisiva para Laurentino enveredar pelo caminho da História.

Não importava o tratamento que recebesse, o meu ex-colega sempre se comportava como soldado, jamais como escravo ou servo. E é esse o ponto a que eu queria chegar ao escolhê-lo como tema. A escravidão, sobre a qual ele agora escreve, é um horror de proporções épicas na história humana. E fisicamente indelével. Como está escrito no livro, somos descendentes de escravos ou de senhores de escravos de todas as etnias. As suas marcas “estão também na fisionomia de praticamente todos os mais sete bilhões de seres humanos hoje vivos”, diz Laurentino. Há, contudo, um tipo de submissão a que homens livres estão predispostos na esfera pessoal e que lei nenhuma abolirá — o da servidão voluntária. Pego emprestada da filosofia política a expressão criada por Etienne de La Boétie, autor que viveu no mesmo século XVI abordado por Laurentino no seu primeiro volume sobre a escravidão. La Boétie discorreu sobre povos subjugados por tiranos; eu falo de indivíduos. A meu ver, a servidão voluntária ocorre, no plano individual, quando nos condenamos a julgar nós mesmos sempre a partir do julgamento dos outros sobre nós. Foi isso que Jean-Paul Sartre quis dizer com a máxima “o inferno são os outros”, em Huis Clos. (“É tudo o que sobrou de Sartre”, concluí, depois de reler a peça em meio ao meu torpor parisiense.) Não se trata de ignorar completamente a opinião do próximo a nosso respeito, ou mesmo de alguns longínquos, e sim de ponderá-la e não se deixar escravizar pelo veredicto negativo que nos rebaixa ou o positivo que alimenta o nosso narcisismo para além da conta.

Se houvesse se sujeitado ao inferno daqueles outros na Veja, Laurentino não teria dado uma guinada na sua própria vida e se transformado, já em idade madura, num historiador de peso, num sucesso de vendas, num autor influente. Em alguém que passou para o lado de lá das entrevistas sobre coisas sérias. O Brasil precisa de mais Laurentinos, seja para descobrir como chegamos até aqui, seja para termos mais exemplos de profissionalismo, resiliência e talento. E, não menos importante, para ajudar a preencher as horas insones de cidadãos como eu. Lauren, muito obrigado.

Crusoé

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