Atenção: leitura obrigatória para quem ousa pronunciar qualquer julgamento sobre o presidente Jair Bolsonaro. É o livro O Cadete e o Capitão – A vida de Jair Bolsonaro no quartel, de Luiz Maklouf Carvalho (Todavia, 253 páginas).
Pra começar a conversa, é bom acabar de vez com a imbecilidade de achar Bolsonaro um ogro, tosco, despreparado ou incapaz. O livro regista inúmeros documentos do “cadete 531” e seu desempenho acadêmico como militar – de-fi-ni-ti-va-men-te – não foi o de um Bozo. Alguns trechos do livro:
– “Nos exames finais do primeiro ano da Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), a nota mais alta do cadete 531… foi geometria descritiva, 9,3. Tirou 8,7 em matemática… 7,7 em filosofia; 7,3 em física 1…”
– “O cadete 531 fechou seu segundo ano na Aman com 9,5 nas matérias militares do grupo 1. Tirou 8,8 em estatística; 8,5 em matemática; 7,8 em tipografia…”
Uma das sensações estranhas de ler o livro de Maklouf é que, pela primeira vez em muitas anos, é possível para o leitor atravessar páginas e páginas de algo sobre Bolsonaro sem um único adjetivo. Nem Mito, nem Bozo. Apenas fatos. Objetivos e documentados.
A maior preciosidade do livro – que renderá uma segunda coluna apenas sobre essa especificidade – é que tanto quanto Lula, Bolsonaro também foi acusado e julgado. E Maklouf desvenda – com base em documentos do Superior Tribunal Militar – como uma interpretação enviesada desses favoreceu o hoje presidente.
Mas, antes disso, as loas que lhe prestaram alguns superiores quando vergava a farda de oficial do nosso glorioso Exército:
– “A atitude do cadete Bolsonaro enche de orgulho seus superiores de arma, credenciando-o a ser citado como exemplo entre seus pares, elogiou o comandante do 4 BPE.
– “…demonstrou para com seus homens desvelo invulgar”, atestou em 1984 seu então comandante.
Começo pelos elogios só de pirraça pois, para muita gente, Bolsonaro só pode ser sinônimo de limitações. É importante fazer a ressalva, para que a resenha não distorça o notável trabalho do autor, que os elogios da ficha do cadete 531 estão normalmente associados à sua excelente forma física.
O apelido de Bolsonaro era “Cavalão”. Seu desempenho acadêmico ostenta também muitos registros medianos. E há uma avaliação, já bastante ressaltada por outros resenhadores, sobre uma passagem dele durante férias por um garimpo na Bahia, em que seu comandante o define como portador de excessiva ambição e outras considerações desfavoráveis.
Ou seja, o livro não fala que Bolsonaro foi um aluno genial. Longe disso, segundo a vasta documentação pesquisada. Considere minha ênfase nas virtudes do capitão uma provocação de minha parte. Nestes tempos em que só é possível enxergar defeitos em quem está de um lado ou de outro, vale lembrar que ninguém – nem Bolsonaro, nem Lula – cabem em reducionismos. Todos têm defeitos. E virtudes. Até o capitão, por favor. Quem diz isso sou eu, talquei?
O grande salto para o abismo e, contraditoriamente, para o Olimpo na vida do então capitão foi um artigo publicado na revista Veja, em 1987, com o título “O salário está baixo”.
No texto, o então capitão da ativa dizia que “torno público este depoimento para que o povo brasileiro saiba a verdade sobre o que está ocorrendo na massa de profissionais preparados para defendê-los”, dizia o capitão da ativa Bolsonaro. (Registro meu: 32 anos depois, presidente da República, sairia dos lábios presidenciais a seguinte declaração: “O Exército vai entrar em meio expediente, porque não tem comida para dar para o recruta, que é o filho de pobre. A situação que nós encontramos é grave. Não há maldade da minha parte. Não tem dinheiro, só isso, mais nada”. O destino, esse travesso!).
Mas o ponto fundamental do livro está na causa da saída de Bolsonaro do Exército e, por tabela, em sua entrada na política: a chamada e sugestiva operação “beco sem saída”.
Em síntese, na própria revista Veja meses depois, saiu publicada uma matéria em que Bolsonaro era acusado de ter contado a uma repórter (junto com outros colegas da caserna) que haveria uma sucessão de explosões de banheiros na vila militar do Rio, sem intenção de provocar vítimas. Apenas para demonstrar a apreensão dos militares com o arrocho salarial.
Em princípio, a conversa era para ser reservada, mas a revista entendeu que por se tratar de um enredo com cores criminosas e terroristas não poderia tomar conhecimento de tal fato e não torná-lo público. Na semana seguinte, abriu a caixa preta dos planos de Bolsonaro e escancarou seu nome e suas intenções.
Luiz Maklouf conta como Bolsonaro foi condenado por unanimidade (3 a 0) pelo Exército no chamado Conselho de Justificação e, depois, como foi inocentado por 9 a 4 pelo Superior Tribunal Militar, com base numa distorção jurídica comprovada.
Aos fatos: Bolsonaro havia desenhado alguns croquis e deixado com uma repórter da revista Veja. Assim que o caso veio a público, ele negou. Na semana seguinte, a revista não apenas apontou todos os funcionários – a repórter, o fotógrafo, o motorista, o editor – que conversaram com Bolsonaro sobre o plano, assim como apresentou uma “prova material”: desenhos com palavras escritas de próprio punho, que permitiriam um exame grafotécnico.
Logo, as pericias sobre esses croquis passaram a ser cruciais. Antes disso, Maklouf mostra que o estilo vai e volta de Bolsonaro em suas declarações já se prenunciava em sua posição como réu.
Em 12 de dezembro de 1987, em depoimento, o então oficial Bolsonaro respondeu que tinha consciência de que a publicação do artigo sobre as dificuldades salariais dos militares era “uma transgressão disciplinar e que, à época, não levou em consideração que seria uma deslealdade, mas que agora acha que sim”.
Bolsonaro faria uma confissão de deslealdade militar por escrito se um dia sequer imaginasse que se tornaria comandante em chefe das Forças Armadas de seu país? Travesso o destino!
Para encerrar, foi feito um primeiro laudo pela Polícia do Exercito. Esse foi inconclusivo, dizendo que não havia como comprovar que as letras e os desenhos eram ou não da autoria de Bolsonaro (a perícia foi feita com uma cópia e não com os originais, posteriormente entregues pela revista).
Depois, houve um segundo, da Polícia do Exército (agora, com base nos originais). Também inconclusivo. Um terceiro, da Polícia Federal. Taxativo: era de Bolsonaro. E por fim – aí é que está a jabuticaba!!! – Bolsonaro apresenta como quarto laudo o que na verdade é a retificação – repito, a correção – do segundo. Então, pela matemática sustentada pelo então acusado, haveria dois laudos acusando-o e dois laudos livrando-o de culpa.
Na verdade, há 2 laudos inconclusivos que Bolsonaro (à época sem advogado) carimbou o rótulo de “duvidosos” e, portanto, em favor do réu. Mas, o livro de Maklouf comprova, na verdade houve três – três – laudos: um inconclusivo (aquele feito com base na cópia e não no original), outro inicialmente inconclusivo e posteriormente corrigido pela Polícia do Exército atestando a autoria de Bolsonaro e um terceiro, da Polícia Federal, taxativamente afirmando que a autoria era dele e ponto final.
Ou seja, na matemática de Bolsonaro houve um empate de laudos, 2 a 2. Essa foi a tese encampada pelo STM. Pelo que se revela agora, o placar final foi 2 a 0: 2 contra Bolsonaro e um inconcluso, que não comprovou nem desmentiu a autoria, até porque não realizado com base nos originais.
Portanto não valia nada. A rigor, o que o livro revela é que houve 2 pericias. E foram elas que basearam a decisão de punir Bolsonaro.
E revela como esses 2 laudos comprobatórios foram transformados num “empate” de 2 a 2 no STM, inocentando Bolsonaro, exatamente de acordo com a narrativa criada por ele para ensejar um “empate” de laudos que, a rigor, não existiu.
Mas…tudo isso hoje é história. E o fato, como mostra o autor de O Cadete e o Capitão, é que o julgamento de Bolsonaro pelo STM acabou se tranformando – estão aí os autos – muito mais na condenação da imprensa do que na absolvição do acusado.
O grande mérito do livro, como destaquei logo no início, é um silêncio que não se costuma ouvir em torno da palavra Bolsonaro. Maklouf conta a vida do atual presidente, suas origens, sua infância, sua trajetória militar, seu grande incidente que projetou-o para a vida pública, tudo isso apenas com fatos e documentos, naquilo que o bom jornalismo pode ter de melhor: objetividade, imparcialidade, ausência de viés.
Lendo o livro sem adjetivos e adrenalinas de Maklouf sobre Bolsonaro e vendo como o jornalismo é praticado hoje, constata-se que o atual presidente mudou muito menos do que a forma de noticiar os fatos. Taí uma péssima notícia.
Poder360