O ministro Paulo Guedes pergunta: desde quando precisamos da Argentina? Desde sempre, caro Paulo. O Brasil e a Argentina são parceiros antigos, tiveram momentos de tensão, juntos enfrentaram um inimigo comum no Império e têm vivido uma história intensa. Eu acompanhei uma parte dessa relação como jornalista de política externa no governo militar. Os dois países estavam de acordo sobre torturar e matar opositores, na operação Condor, mas tinham desconfianças e conflitos no comércio e na energia. Havia quem temesse uma corrida nuclear entre ambos.
O próprio governo militar, que alimentou a desconfiança, tratou de desfazê-la. Foram três intermináveis anos de negociação tocada pelo ministro Ramiro Saraiva Guerreiro até o fechamento do acordo que permitia a conclusão da hidrelétrica de Itaipu e deixava espaço para Corpus. Houve um tempo em que o medo um do outro era tanto que a Argentina achava que Itaipu fora concebida como arma. Abertas as comportas, Buenos Aires seria inundada. Era esse clima que Guerreiro desfez, com paciência, diplomatas profissionais, e a certeza de que se entender com a Argentina é destino, um determinismo geográfico. As guerras começam às vezes por mal entendidos não desfeitos a tempo.
Guerreiro — aprendi muito com ele — nunca criticava a Argentina nas conversas com os jornalistas. Ele preferia elogiar os avanços das negociações. Certa vez ele fez o impossível. Elio Gaspari costuma lembrar desse episódio com uma de suas expressões: “ele tirou a meia sem descalçar o sapato.” Foi quando a ditadura argentina nos seus estertores decretou guerra à Inglaterra. Aqui, a nossa ditadura estava no fim também, mas tentava sair de fininho. Eles, mais sanguíneos, decretaram a guerra contra a velha potência colonial, que havia perdido os dentes, mas ainda controlava as Malvinas, chamada de Falkands pelos britânicos.
Primeiramente, a diplomacia brasileira nunca aceitou o nome inglês. Era um recado. Depois, foi bem-sucedida na meta que se impôs: ficar ao lado da Argentina, ser contra a guerra, e não brigar com a Inglaterra.
A diplomacia brasileira quando bem trabalhou foi nesse sentido. A nós não cabe o uso da força. É um equívoco infantil do candidato a embaixador Eduardo Bolsonaro dizer que “diplomacia sem armas é como música sem instrumentos”. É que o menino não entende de diplomacia nem de música. O Brasil, que nunca será potência militar, tem que exercer o soft power. É nesse campo que poderíamos avançar protegendo as florestas e fazendo disso o arsenal nas negociações do século XXI na política do clima.
Houve um tempo de conjunturas macroeconômicas diferentes em que o diálogo ficou áspero. O então embaixador do Brasil na Argentina Marcos Azambuja deu um jeito de jogar uma partida de golfe com o então presidente Carlos Menem. No jogo, entregou o recado: “Señor presidente, nosotros estamos condenados a ser amigos”.
Na diplomacia, às vezes uma coisa leva à outra. Para o bem e para o mal. Palavras hostis minam o chão no qual precisamos andar. No acordo das hidrelétricas o que eu vi foi a retirada de minas de um terreno em que se caminhou penosamente. Depois do tratado, assinado em Assunção, houve um acordo entre os dois países em que cada um abria as instalações nucleares para vistoria do outro. Uma forma de provar que os projetos tinham todos os objetivos pacíficos, da medicina à energia, mas não os militares. Veio, então, o Mercosul, que aumentou muito o comércio entre os quatro países — Uruguai e Paraguai incluídos. Hoje a Argentina é o maior comprador de produtos manufaturados brasileiros, os bens que temos dificuldade em exportar.
No Brasil se fez uma escolha eleitoral em 2018, na Argentina se fará este ano, pelo visto, no sentido oposto. E se os países tiverem governos de ideologias diversas? É hora de minguar a relação e ofender os vizinhos? Evidentemente, não. Os dois governos serão traço na história longa dessa relação bilateral. Argentina e Brasil têm errado, mas o mais inteligente é tirar o máximo proveito dessa parceria. Uma vez, o ex-ministro da Economia argentino Domingo Cavallo me disse: “Argentina es el tango, Brasil es la samba”. Somos distintos. A diferença não pode separar. Esta é a arte da diplomacia.
O Globo