Vocês que vivem seguros
Nas suas casas aquecidas,
Vocês que encontram à noite
A comida quente e rostos amigos:
Considerem se este é um homem
Que trabalha na lama
Que não conhece paz
Que luta por meio pão
Que morre por um sim ou por um não.
Considerem se esta é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para lembrar
Vazios os olhos e frio o ventre
Como uma rã no inverno.
Meditem nisto que aconteceu:
Ordeno-lhes estas palavras.
Esculpem-nas no seu coração
Estando em casa andando pela rua,
Deitando-se levantando-se;
Repitam-nas aos seus filhos.
Ou que desmorone a sua casa,
A doença os impeça,
Os seus rebentos lhes virem a cara.
Trata-se de uma advertência (alguns definiriam maldição em chave bíblico-poética) para que não se esqueça o que ocorreu nos campos de concentração nazistas. Já em 1946, quando escreveu o livro, Primo Levi anteviu que o horror poderia ser cancelado da memória, não importam os testemunhos, os registros, os livros e os filmes. O negacionismo do Holocausto só faz confirmar o seu receio. É uma tendência da química da espécie.
O livro de Primo Levi é um primor porque a narrativa é seca. Mostra a tragédia sem rancor, pieguice ou complacência para quem a sofreu na carne. Todos são demasiado humanos — e, como diz ele, “todos descobrem, cedo ou tarde nas suas vidas, que a felicidade perfeita não é realizável, mas poucos se detêm sobre a consideração oposta: que assim o é também uma infelicidade perfeita”. O que não significa igualar carrascos e vítimas. Na edição que li, há um apêndice, de 1976, em que Primo Levi dá respostas às perguntas mais comuns que lhe foram feitas por estudantes e leitores adultos desde o lançamento de Se questo è un uomo. Uma delas é justamente sobre o fato de não haver ódio nem desejo de vingança no livro. Primo Levi diz provar a tentação do ódio, inclusive com certa violência, mas afirma: “Não sou um fascista, creio na razão e na discussão como supremos instrumentos de progresso, e por isso ao ódio anteponho a justiça. Justamente por esse motivo, ao escrever este livro, assumi deliberadamente a linguagem pacata e sóbria da testemunha, não a lamentadora da vítima nem a raivosa do vingador: pensava que a minha palavra seria tão mais crível e útil quanto mais parecesse objetiva e menos soasse apaixonada; só assim a testemunha em juízo cumpre a sua função, que é a de preparar o terreno para o juiz. O juiz são vocês”.
Em outra resposta sobre como explicar o ódio fanático dos nazistas contra os judeus, Primo Levi recorre a injunções históricas, mas diz que não se deve compreender, porque compreender é quase justificar. “‘Compreender’ uma proposição ou um comportamento humano significa (também etimologicamente) contê-lo, conter o seu autor, colocar-se no seu lugar, identificar-se com ele. Ora, nenhum homem normal poderá nunca identificar-se com Hitler, Himmler, Goebbels, Eichmann e tantos outros. Isso nos angustia e também nos traz alívio: porque talvez seja desejável que as palavras deles (e também, infelizmente, os seus atos) não nos sejam compreensíveis”.
Já que continuamos prisioneiros em1964, recorro a Primo Levi para fazer uma proposta aos que revivem o terrorismo de organizações de esquerda, durante o regime militar, e o terrorismo de Estado, que torturou e assassinou os integrantes delas: não tentemos compreender uns e outros. Compreender está perigosamente perto de justificar — e terrorismo nenhum é justificável. O terror é o horror individualizado. Não esqueçamos nada, mas não compreendamos nada. Qualquer que seja o lado, usemos a linguagem pacata e sóbria da testemunha. Ou a nossa casa desmoronará, a doença nos impedirá e os nossos rebentos nos virarão a cara. Leiam Primo Levi.
Crusoé