A intolerância cultural é fomentada pela radicalização política que toma conta do país, da qual se tem notícia há alguns anos. A mesma Miriam Leitão que foi proibida de participar de uma festa literária em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, devido a ameaças de grupos de extrema direita ligados ao bolsonarismo, foi agredida em 2017 em um vôo de Brasília para o Rio por sindicalistas petistas que retornavam de um congresso do partido.
Da mesma maneira que o presidente Bolsonaro disse a jornalistas estrangeiros que Miriam era terrorista, e mente quando denuncia que foi torturada, os petistas do vôo a chamaram de terrorista.
O ex-presidente Lula também tinha o hábito de anunciar a seu público os “inimigos” jornalistas, a mesma Miriam Leitão, William Bonner e, como diz o Gaspari, o signatário desta, entre outros.
Assim como a blogueira cubana Yoani Sanchez foi impedida de participar de um debate em 2013 na Livraria Cultura por esquerdistas, direitistas impedem autores e jornalistas vistos como de esquerda de participar de eventos públicos.
Diante do alastramento dessa cultura do ódio, a Academia Brasileira de Letras (ABL), em memorável solenidade de comemoração de seu 122º aniversário na quinta-feira, posicionou-se através da seguinte nota lida por seu presidente Marco Luchesi:
“A ABL, sempre atenta à defesa da liberdade de expressão e condenando qualquer forma de censura, venha de onde vier, manifesta sua preocupação com recentes episódios de intolerância no âmbito de feiras de livros e festas literárias.
Eventos desse tipo desempenham papel importante no estímulo à leitura no país, propiciando oportunidades de contato entre autores e leitores, além de expor as pessoas a uma salutar e desejada diversidade de pensamentos, experiências e pontos de vista – algo fundamental numa democracia e numa cultura de paz.
Qualquer ameaça à livre expressão e à pluralidade de manifestações culturais constitui um lamentável retrocesso a um obscurantismo que não deve ser tolerado”.
A tomada de posição foi aplaudida de pé pela platéia, que contava, entre outros, com as atrizes Fernanda Montenegro e Beth Goulart.
Faz parte dessa “cultura do ódio” a decisão do presidente Bolsonaro de intervir na Agência Nacional de Cinema (Ancine), por motivos errados.
Quando ele se refere a “Bruna Surfistinha” como pornografia, e diz que um filme desses não pode ser financiado por dinheiro público, está se intrometendo na produção da cultura nacional, tentando direcioná-la para seu ponto de vista ideológico.
Da mesma maneira que no governo Lula, em 2004, o Ministério da Cultura tentou controlar a produção audiovisual do cinema e da televisão com a criação da Agência Nacional do Cinema e o Audiovisual (Ancinav).
Se não houvesse uma reação imediata e forte da sociedade, a proposta intervencionista teria vingado. A legislação falava também na proteção dos “valores éticos e sociais da pessoa e da família”, e exigia “contrapartidas sociais” para financiamento de obras audiovisuais.
O cineasta Cacá Diegues, que viu na ocasião “uma vitória jdanovista” (Andrei Aleksandrovich Jdanov, stalinista ideólogo do realismo socialista), hoje, sem fazer comparações, diz que todo governante autoritário tem mania de dirigir a produção cultural do país.
Nem todas as decisões com relação à Ancine estão erradas, na avaliação dos produtores e cineastas nacionais. A transferência do Conselho Superior de Cinema, responsável pela política nacional de audiovisual, do Ministério da Cidadania para a Casa Civil foi uma decisão correta, desde que o objetivo seja mesmo o de “fortalecer a articulação e fomentar políticas públicas necessárias à implantação de empreendimentos estratégicos para a área”.
Já a Ancine, que é uma agência reguladora que não pode ser privatizada, como disse Bolsonaro, apenas extinta, como também está sendo cogitado, será transferida do Rio para Brasília para acabar com as festas a beira-mar e “ter um filtro, sim. Já que é um órgão federal”.
Esse filtro não há em nenhum país do mundo que se preze, e preze a cultura como manifestação de sua diversidade . O que não pode é só financiar filmes “terrivelmente evangélicos”, como “ Nada a Perder”, a cinebiografia de Edir Macedo que vendeu milhões de ingressos para salas de cinemas vazias.
É preciso ser “terrivelmente democrata” para resistir a esses ataques à liberdade de expressão.