Homens franceses gostam de usar calças vermelhas no verão. Você poderá dizer que o fenômeno indumentário tem ligação com o tradicional pendor gaulês para o socialismo, mas acho que é principalmente uma forma de celebrar as cores quentes propiciadas pela estação e tão raras no restante do ano, principalmente em Paris e naqueles confins ainda mais cinzentos com a Bélgica.
As calças vermelhas são tão abundantes na capital francesa que, dois verões atrás, propus ao meu caçula que contássemos homens vestidos com calças vermelhas na cidade. Quem visse mais ao longo de duas semanas, ganhava a competição. Ele me perguntou se valia contar mulheres. Respondi que não, raciocinando automaticamente em termos binários (espero morrer antes de isso virar crime, porque acho que não conseguirei evitar a Santa Inquisição do Politicamente Correto). Aguçado no esplendor dos seus então 11 anos, ele contou 147; eu, 94. O total, portanto, deu 241 diferentes homens de calças vermelhas. Mais de 17 por dia. É uma quantidade muito superior ao máximo que qualquer pessoa veria em São Paulo ou Rio de Janeiro durante uma vida inteira.
O sempre educado Jean Wyllys, que acha um desplante jornalista perguntar como ele ganha dinheiro para viver na Europa, não estava de calças vermelhas no teatro que reuniu artistas e assemelhados em Paris, no dia do julgamento dos habeas corpus de Lula na Segunda Turma. Os artistas e assemelhados subiram ao palco para ler cartinhas apaixonadas endereçadas ao condenado. Jean Wyllys trajava meias com as cores do arco-íris, no que presumo ser uma referência à defesa da causa gay e não apenas bom gosto. Havia dois homens com calças vermelhas: um que me é desconhecido, relativamente jovem, e Chico Buarque.
O cantor preferido de Lula, que tem apartamento há quase trinta anos na Île Saint-Louis, o metro quadrado mais caro de Paris, pediu recentemente visto de longa permanência na França. Em entrevista ao jornal Le Monde, Chico Buarque explicou que, apesar da “cultura de ódio” que se espalhou no Brasil, ele quer passar mais tempo na capital francesa “simplesmente porque em Paris estou mais tranquilo, tenho mais tempo, por exemplo, para me concentrar em escrever o livro que comecei no início deste ano”. Ao contrário de Jean Wyllys, ele não pretende exilar-se: “Em 1969 (quando foi morar na Europa), havia um regime militar no poder, com perseguição concreta e direta dos artistas”. Hoje, Jair Bolsonaro só quer acabar com a farra da Lei Rouanet. Talvez seja por isso que o cantor tenha dito ao jornal que o novo governo pode ser considerado “neofascista”.
A minha referência ao apartamento na Île Saint-Louis não foi inteiramente maldosa. O metro quadrado lá custa cerca de 20 mil euros. Se for com vista para o Sena, então, aí não tem limite. No ano passado, uma imobiliária pedia 550 mil euros por um apartamento de 18 metros quadrados de frente para o rio. Apartamento é quase uma metáfora: tirando o terraço e o pedaço com teto inclinado, dava 10 metros quadrados. Ao contrário do condenado, Chico Buarque trabalhou duro na defesa da humanidade para conquistar o seu patrimônio. Hoje, o seu apartamento deve valer bem mais do que na época em que ele o comprou. Ou seja, saiu lucrando, a menos que o doe para abrigar refugiados sírios. A valorização é uma consequência da lei da oferta e procura, um dos fundamentos do capitalismo condenado por Chico Buarque. Mas não se deve exigir coerência de artistas.
Artistas precisam mesmo usar calças vermelhas, e não somente para celebrar o verão francês. Se não as usarem, correm, no mínimo, o risco de não terem a sua obra devidamente reconhecida por muitos dos seus concidadãos. O escritor argentino Jorge Luis Borges é um exemplo. O cineasta italiano Franco Zeffirelli, que morreu recentemente, é outro. Chico Buarque usava calças de um vermelho vivo no teatro parisiense que reuniu artistas e assemelhados para lerem cartinhas a Lula – ao passo que, em geral, as calças estivais dos franceses são de um vermelho mais pálido. Dá para entender a opção sans-culotte do cantor. Na entrevista ao jornal Le Monde, Chico Buarque disse que um dos problemas do PT foi que o partido “fez concessões, acordos com forças que o PT não teria aceito em tempos normais. O PT deixou de ser um partido de esquerda para se tornar uma formação socialdemocrata”. Nada de vermelho pálido na Île Saint-Louis. Fica a dica para Jean Wyllys.
Crusoé