Irritado com modificações feitas na gestão das agências regulatórias pela Câmara dos Deputados, o presidente Jair Bolsonaro acabou por se dar conta de que seu poder de chefe do Executivo tem encolhido ao ponto de ele se perguntar se estaria se tornando uma espécie de “rainha da Inglaterra”, e não por causa disso. Na mais antiga democracia do mundo, cabe à soberana papel, se não decorativo, no mínimo, simbólico, de chefe de Estado, enquanto o Parlamento preside o governo desde sempre. A Constituição federal não repetiu nestes tristes trópicos a monarquia parlamentarista britânica, mas instaurou um regime que responde pela denominação híbrida de “presidencialismo de coalizão”.
A particularidade deveu-se ao desvio de rota durante a votação no Congresso Constituinte, que se encaminhava no rumo do parlamentarismo em dispositivos constitucionais votados sob a liderança dos tucanos Mário Covas, José Serra e Fernando Henrique, com intromissões do relator Bernardo Cabral. Só que, na aprovação específica do regime de governo, o então presidente José Sarney e o chamado à época multipresidente Ulysses Guimarães (do PMDB e da Câmara) lhe pespegaram o rótulo presidencialista tout court, mas dependente de barganha.
O ex-ministro da Justiça José Paulo Cavalcanti Filho, em sua coluna no Jornal do Commercio, do Recife, em 21 de junho, dedicou um parágrafo de seu artigo dirigido ao Congresso Nacional, sob o título de “Respeitem o povo, senhores!”, a deixar clara a rejeição popular ao parlamentarismo: “Foram dois plebiscitos. Ambos decididos contra o parlamentarismo. O primeiro, em 6/1/1963, com 82% dos votos. E o segundo, em 21/4/1993, com 69,2%. Nos dois casos indicando, claramente, que não queremos deputados e senadores escolhendo quem vai dirigir o País. Exigimos ter nós mesmos, povo, esse direito. Até para errar. Quatro anos atrás, houvesse parlamentarismo, e primeiro-ministro seria Eduardo Cunha. Ou Renan Calheiros. Queremos isso?”. A questão deveria encerrar o debate, mas não é o caso.
A Constituição, debatida, votada e aprovada não por uma assembleia exclusiva, o que seria certo, mas por congressistas que se arvoraram ao papel de confeccioná-la e depois permanecer, per omnia saecula saeculorum, amém, fazendo e desfazendo leis a seu bel prazer. Protegidos pela reeleição permanente e pelo foro de prerrogativa de função, deputados e senadores derrubaram Dilma Rousseff e garantiram ao vice eleito com ela, Michel Temer, o gozo da impunidade plena. Impediram que ele fosse processado por crimes que o levaram, fora da Presidência, duas vezes a temporadas em privilegiadas salas isoladas de repartições públicas e quartéis, reservadas aos ex sem foro, entre eles o petista Lula da Silva.
Em janeiro de 2018 vislumbrei numa campanha popular contra a reeleição de todos os mandatários da República a única chance de interromper esse presidencialismo de cumplicidade, muito mais do que de coalizão. Mas os chefes das organizações partidárias contaminadas pela presença em cargos de comando de acusados, processados, condenados e suspeitos investigados pela Operação Lava Jato e congêneres organizaram de tal forma a sucessão presidencial que só conseguiram lhes escapar ao controle o sindicalista bombeiro Cabo Daciolo e o ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro. Este levou a eleição de roldão atropelando todos os adversários, que eram sócios e aliados ou fingidores de oposicionistas da roubalheira do PT, PMDB, PR, PDT e muitas outras siglas, além do PSDB.
Bolsonaro conseguiu encarnar a bandeira invencível de eleições no Brasil pós-Lava Jato, o antipetismo. E, embora ainda não tenha compreendido isso, talvez por mera deficiência de sinapse, sobrevive a uma administração atabalhoada e muitas vezes desastrosa e mantém o apoio da maior parte do eleitorado. Talvez porque os adversários, como ele, também nada perceberam.
Diante da inércia de um partido absolutamente amorfo, que lhe cedeu a legenda para candidatar-se, um tal de PSL, quase um PFL às antigas, o chefe do Executivo não parece sequer se posicionar diante dos golpes que tem sofrido dos Adélios Bispos do Legislativo. O ex-deputado não conseguiu ainda atinar para o fato de que a Câmara é presidida por Rodrigo Maia e o Senado, por Davi Alcolumbre, ambos do DEM, legenda do chefe de sua Casa Civil, Onyx Lorenzoni, ao qual paga com permanência a chamada fidelidade de primeira hora. O presidente do Senado perdeu a última eleição majoritária que disputou para o governo do Amapá, território federal recentemente promovido a Estado por benemerência legislativa, e responde por crimes de contabilidade na Justiça Eleitoral. O Brasil inteiro testemunhou a fraude de sua vitória sobre Renan Calheiros, mas ele teve a suprema desfaçatez de arquivar a investigação com a cumplicidade do colega Roberto Rocha, do PSDB (ora, vejam só!) do Maranhão. Descendente do clã Maia de Catolé do Rocha, no sertão da Paraíba, o presidente da Câmara foi eleito nos estertores da contagem, mercê do milagre da multiplicação dos votos do sistema proporcional.
Juntos, desengavetaram delírios golpistas de Eduardo Cunha e Renan Calheiros, veteranos do crime na política. Usaram a expressão “orçamento impositivo”, em teoria necessário, mas no caso tupiniquim uma forma de entregar o Orçamento à rapina dos abutres de sempre. Na votação, praticamente unânime, dessa facada pelas costas dos 57 milhões e mais de 700 mil eleitores que sufragaram o presidente, o filho deste, Eduardo, não apenas repetiu Brutus, que apunhalou César na escadaria do Senado romano, mas ainda recorreu à aprovação do pai à propositura do tempo em que estavam na oposição. Ficou clara uma das razões para o ocorrido: nem o rebento do presidente consegue diferenciar governo de oposição. Daí à mudança de gestões das agências foi dado apenas um passo atrás.
Estadão