Na desabitada terra do meio é que se pode encontrar a trilha para entender os candentes acontecimentos políticos do Brasil. As conversas do ex-juiz Sergio Moro e do procurador Deltan Dallagnol mostram uma cooperação que não deve haver entre o julgador e acusador, mas o que está sendo revelado não reduz a relevância da operação Lava-Jato. No espontâneo comparecimento do ministro da Justiça à Comissão de Constituição e Justiça, ele esclareceu vários pontos, mas não eliminou as dúvidas que permanecem sobre o que houve em Curitiba.
Na sessão na CCJ, os dois polos exageraram seus argumentos. Os apoiadores do ministro nada viram de errado nos diálogos divulgados pelo site “The Intercept Brasil”. A oposição defendia a tese que aqueles diálogos desmontam completamente a operação Lava-Jato. Aquela imensidão de provas, malas de dinheiro, relações promíscuas entre empresas e governo, contratos fraudados, assalto à Petrobras, as inúmeras confissões, tudo teria se desmanchado no ar porque se revelou que juiz e procurador trocaram mensagens indevidas.
Além de acusar os hackers de crime, que eles de fato cometeram, o ministro sustentou duas linhas de defesa. Na primeira, a dúvida sobre a autenticidade das conversas. Como ele não tem mais o aplicativo em seu celular, não pode garantir que elas sejam verdadeiras, ainda que não as esteja negando. Na segunda, os diálogos foram normais e as conversas procedimentais.
No conjunto das conversas há uma conexão além da medida. Moro pediu para os procuradores soltarem nota para mostrar as contradições da defesa. Por que? Bastava a ele, juiz, ver as contradições e levar isso em conta em seu julgamento. Admitiu ao procurador que tinha receio de uma “reação negativa” no STF. Qual o problema? Todo juiz sabe que suas decisões podem ser alteradas nas outras instâncias. A frase “in Fux we trust”, tem um “we”. Por que “nós”? A palavra representa uma união que não pode haver entre o julgador e o acusador. Imagina se ele escrevesse para os advogados de Lula que “nós” podemos confiar num determinado ministro. Seria estranho.
Para Flávio Bolsonaro, nada havia ali para ser colocado sob o escrutínio popular.
— A população já exerceu seu escrutínio, escolhendo esse projeto para o Brasil nos próximos quatro anos. Hoje o senhor integra esse projeto com toda a competência.
Ao entrar no governo Bolsonaro, Moro ficou exposto a toda a discussão sobre seus reais propósitos no momento em que julgou. Ele entrou no “projeto”. E nem se pode dizer que ele escolheu integrar um grupo de vestais defensores do combate à corrupção. As perguntas que o senador Flávio Bolsonaro jamais respondeu sobre o que se passou em seu gabinete de deputado estadual mostram que as sombras permanecem sobre a política brasileira.
Por outro lado, alguns dos que se sentem ameaçados pelas investigações anticorrupção tentam transformar esse caso numa prova de que a Lava-Jato acabou e que tudo o que ela fez foi resultado de um “conluio político”, o que evidentemente não faz sentido algum. Se as confissões e as provas não foram suficientes, basta pensar na materialidade do dinheiro devolvido. O senador Renan Calheiros, homem de muitos processos e investigações, apareceu na comissão com uma lista de 13 perguntas pretendendo enredar o ministro da Justiça. Enredou-se a si mesmo. Foi difícil entender seu texto, mas ficou claro o contexto: para políticos como ele, se a Lava-Jato se desmanchasse seria o ideal. O senador Humberto Costa, depois da lista de ofensas a Moro, fez ameaças, repetindo que “vem muita coisa por aí”.
Outro argumento de Moro foi estatístico: foram 90 denúncias apresentadas pelo Ministério Público; dessas, 45 ações foram sentenciadas. O MP recorreu de 44.
— É um indicativo claro de que não existe conluio nenhum, inclusive (há) divergência — disse.
Recorrer de uma decisão é rotina, dado que são várias as instâncias. O melhor argumento de Moro é o de que a operação vai muito além dele e de Curitiba, as suas sentenças já foram confirmadas em outras instâncias, a Lava-Jato atingiu partidos da esquerda e da direita, foi para outros estados e virou um movimento contra a corrupção. O problema é que esse movimento não pode ser capturado por nenhum grupo político. E é isso que o bolsonarismo tem tentado fazer desde a campanha.
O Globo