O escritor Jean Cocteau disse certa vez que os italianos eram franceses de bom humor. Depois de conviver durante anos com franceses, constatei que Cocteau estava certo e que os franceses são italianos de mau humor. Ou seja, poderiam formar um só povo com os vizinhos transalpinos. Na verdade, a única diferença entre ambos é que os italianos não escondem as suas mazelas. Gritam sobre a corrupção que os assola e autoflagelam-se como se vivessem no pior país do mundo. Mais: não mentem nas estatísticas que lhes são desfavoráveis. Os franceses, ao contrário, tentam ocultar tudo que é ruim. E mentem nas estatísticas que, se espelhassem fielmente a realidade, mostrariam que eles não são, assim, uma Alemanha.
Na verdade, os políticos franceses são tão corruptos quanto os italianos, com as exceções de praxe. E as máfias marselhesa e corsa não ficam atrás das originais peninsulares — mas são tratadas quase como se fossem parte de um folclore inevitável. No dia a dia dos cidadãos, eles também vivem dando jeitinho para burlar a legalidade. Em Paris, pequeno exemplo, quase todos os prestadores de serviços embolsam em espécie, no “bláck”, como dizem, para evitar pagar impostos — o que é difícil de recriminar, dada a carga fiscal escorchante que se tem na França. Como não dá para esconder tudo o tempo todo, os escândalos de corrupção que explodem por lá são abordados como exceções, não como sistêmicos, o exato contrário do que ocorre na Itália. O ex-presidente Nicolas Sarkozy pode ir para a cadeia, porque recebeu pelo menos 5 milhões de euros da Líbia de Muamar Kadafi, para financiar a sua campanha eleitoral de 2007. Dinheiro transportado em malas. Mas a questão é apenas Sarkozy, como se fosse um caso isoladíssimo. Não é. Financiamento ilegal de campanha — e desvio de dinheiro público — é um crime recorrente na França. Ninguém até agora explicou a contento como o filho do ex-ministro socialista Laurent Fabius comprou um apartamento de 285 metros quadrados, em Paris, por 7 milhões de euros, sem que tivesse renda justificável para a aquisição. O caso de vez em quando volta à imprensa, mas… É um caso isolado, claro, parce que la grandeur de la France, vous savez…
Não estou aqui desancando os franceses porque acho o assunto especialmente interessante. Estou apenas buscando, como brasileiro, diminuir o meu complexo de vira-lata na comparação com eles. Nessa operação psíquica, Patrick Balkany, prefeito de Levallois-Perret, ocupa um lugar especial. Do mesmo partido de Sarkozy, ele ocupa o cargo desde 2001. Os eleitores o adoram. Ganham presentes de aniversário de Balkany, comprados com dinheiro público, e cada bebê nascido na cidade recebe um enxovalzinho da prefeitura. Balkany também diverte os cidadãos que comparecem a audiências públicas. Ele brinda a plateia humilhando os adversários com piadas grosseiras. Em 2012, quando era deputado na Assembleia Nacional (na França, estranhamente, um político pode ser parlamentar e prefeito ao mesmo tempo), Balkany e colegas seus não contiveram os seus ímpetos atávicos ao recepcionar a então ministra Cécile Duflot, que apareceu com um vestido esfuziante para expor um projeto aos deputados. O fato chamou ainda mais a atenção porque ocorreu às vésperas de os deputados votarem uma lei contra assédio sexual.
Balkany é assombrosamente despudorado, o que é ótimo para a minha operação psíquica de vira-lata brasileiro. Ele está às voltas com investigações sobre o seu patrimônio, mas não se abala. Os 13 milhões de euros que acumulou e não declarou? Fruto de trabalho duro como empresário. A casa suntuosa na ilha de Saint-Martin, no Caribe, comprada por meio de uma offshore e avaliada em 3,2 mihões de euros? Primeiro não era dele. Depois, a sua mulher, a fidelíssima Isabelle, disse que foi comprada por ela com dinheiro de herança. A outra casona em Saint-Martin, vendida pelo casal por 3,5 milhões de euros? Era só alugada. A casa de campo em Giverny, colocada à venda por 6 milhões de euros? Não valia tanto assim no momento da compra pelo equivalente a 150 mil euros. O triplex no Guarujá? Oops, errei. Quando não há saída, Balkany, descendente de judeus do Leste Europeu, saca da carta do antissemitismo francês. Tradição é tradição.
Nesta semana, Balkany compareceu a um tribunal para dirimir algumas dúvidas: a quem pertence a mansão em Marrakech, no Marrocos, adquirida via uma offshore, para variar, e muito frequentada pelo prefeito? Metade do preço foi mesmo pago pelo empresário saudita Mohamed Al Jaber, em troca de vantagens imobiliárias obtidas em Levallois-Perret?
Indagado, Balkany foi mais Balkany do nunca: afirmou que aceitou frequentar a mansão, como se fosse dele, porque o braço-direito de Mohamed Al Jaber lhe havia dito que o empresário saudita sofria risco de vida, por causa das dívidas colossais contraídas junto ao governo da Arábia Saudita. A mansão era para lhe servir de refúgio secreto. O juiz do tribunal não segurou o sarcasmo, como relata o jornal Le Monde:
“Então, se bem entendi, o senhor teve participação na proteção física do Sr. Al Jaber, ameaçado no seu próprio país?”
“Não tenho essa pretensão. Mas o seu braço-direito me que disse que, em pouco tempo, ele talvez não pudesse mais entrar na Arábia Saudita. O senhor sabe, todos os príncipes do Golfo têm uma casa em Marrakech porque não sabem o que o futuro lhes reserva”, respondeu Balkany.
Mohamed Al Jaber, presente à sessão, foi irônico:
“Eu gostaria de agradecer ao Sr. Balkany por ter comprado uma casa em Marrakech para mim, onde eu podia me refugiar e graças à qual ainda estou vivo, mesmo que há vinte anos eu não vá ao Marrocos! Nego tudo o que ele diz. É uma loucura. Não faz nenhum sentido.”
O meu complexo de vira-lata foi encolhendo à medida que eu lia a reprodução das falas. Ao final, perguntaram a Balkany por que a offshore oficialmente proprietária da mansão chama-se Dar Gyucy. De acordo com os investigadores, trata-se de uma contração dos nomes dos dois netos de Balkany, Gyula e Lucie.
Resposta de Balkany:
“Não poderia ser um anglicismo em relação ao suco de frutas, “juicy”? Porque lá (no Marrocos), o senhor sabe que há laranja para todo lado. De qualquer forma, não fui eu (que deu o nome) nem minha mulher. Não sei. Sem dúvida foi alguém que achou bonitinho.”
Adoro Balkany, assim como os eleitores de Levallois-Perret. Adoro Balkany porque ele é Gyucy como o Brasil.
Não tem jeito, não vou me livrar nunca do viralatismo. Me engana que eu gosto, francesada.
Crusoé