Não iremos para o beleléu (por Deonísio da Silva) – Heron Cid
Bastidores

Não iremos para o beleléu (por Deonísio da Silva)

20 de maio de 2019 às 13h00 Por Heron Cid
Manifestantes exibem placas durante protesto contra o corte de verbas em universidades, na Avenida Paulista, em São Paulo (SP) - 15/05/2019 (Andre Penner/AP)

Beleléu designa morte e outras perdas irreparáveis. A palavra foi trazida para o português por escravos bantos vindos sobretudo de Moçambique e de Angola. Por influência da educação ministrada por padres jesuítas e outros letrados cristãos, beleléu mesclou-se a inferno.

Ela tem variantes ou expressões de domínio conexo, tais como cafundó do judas, caixa-prego, onde o vento faz a curva etc. E também o brejo, este último o único lugar onde a vaca tosse, porque o brejo é úmido e ela pode ficar resfriada.

Quem vai para o beleléu talvez vá também para as cucuias, nome de antigo cemitério na Ilha do Governador, no Rio, na praia da Cacuia, assim chamada pela presença de um pássaro com este nome, de cuja designação formou-se a variante cucuia.

O Brasil parece ter tomado o rumo de tais localidades nessas últimas semanas. O mar está proceloso e o comandante discute com a tripulação, em vez de cuidar do leme. Mas parece que na equipe ainda há quem cuide…

Muitas questões não são bem formuladas e por isso não podem ser bem respondidas. Vou acrescentar um quadro pequeno, mas que acho esclarecedor. Professor universitário há 44 anos, 22 dos quais numa universidade federal, seis numa faculdade de padres franciscanos e 16 numa universidade privada, venho notando algumas singularidades nos três modelos de instituições, à luz de leituras e pesquisas, das quais destaco as seguintes.

Na primeira, o reitor era designado pela hierarquia da ordem religiosa à qual pertencia. Professores, funcionários e alunos não eram sequer consultados. Nenhum frade queria ser reitor. Quando designado, recebia o cargo e os encargos como missão.

Tal como o reitor de meus tempos de seminário, quando o bispo ou o superior provincial, conhecendo os padres alocados na diocese ou na ordem, escolhia um deles cujo perfil lhe parecia mais apropriado, também naquela instituição o superior da Ordem designava um dos professores para o cargo.

Na universidade pública onde ensinei por mais de 22 anos, o presidente do sindicato dos professores seria vice-reitor e depois reitor. Os dois seriam depois sucedidos pelas lideranças que os sucederam no sindicato. Era um círculo vicioso que resultou em sérios problemas.

“E la nave Va”, a nave ia, como resumiu no título de um filme o genial cineasta italiano Federico Fellini; ou “A luta continua”, como então se proclamava nas disputas internas.

Na reitoria, o reitor não se considerava representante do Estado, que pagava todas as contas com o dinheiro do público, inclusive seu salário e vantagens pecuniárias do cargo, mas, sim, representante do partido político ao qual pertencia. Não era sequer representante das referências solares da docência e da pesquisa da comunidade que o elevara ao topo da lista sêxtupla.

Curiosamente, o mesmo modelo, que colocava medíocres nas reitorias públicas, produziu também bons reitores, que mudaram muito o modo de gerir a universidade e levaram adiante férteis projetos. Paulo Renato Sousa, reitor da Unicamp e depois ministro da Educação, foi um deles, sucedendo no cargo a Murilo Hingel, professor do ensino médio. Da Era Vargas, a referência é Gustavo Capanema.

Por que, ministro ou reitor, a pessoa se distingue ou não no cargo em circunstâncias muito semelhantes? Talvez por que, como se diz no Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, o maior romancista brasileiro do século XX, “em jagunço com jagunço, o poder seco da pessoa é que vale”. Entre ministros reitores também. A diferença era o homem, a diferença era a pessoa, o estilo era ele, dado que o reitor é a referência solar de qualquer universidade.

Por fim, na universidade privada, o reitor cuida da parte acadêmica. Quem dirige a instituição tem outro perfil e quem designa o principal deles é o dono da universidade, que, se a instituição está na bolsa de valores, são os acionistas.

Ditas estas poucas coisas, é preciso destacar que o povo do ensino é um povo ferido.  O governo federal, se formular mal a questão universitária, o que parece estar acontecendo, perderá aqueles que conquistou na campanha que elegeu o grupo ora no poder.

Aliás, talvez até os eleitores de Bolsonaro não aprovem o modo como a questão universitária tem sido conduzida. Desvio houve, como talvez nunca antes tenha havido, do contrário como explicar que haja reitores e outros dirigentes universitários do alto escalão presos ou foragidos, e tantas denúncias do Ministério Público?

Mas foi uma notória minoria e que seja então punida. O que não se pode punir é a universidade brasileira. Além do mais, é célebre o bordão “o povo é soberano”, ao que o ministro João Calmon acrescentou: “então, eduquemos o soberano”.

Quem educa o soberano? Principalmente os professores do ensino médio, que são educados pelas universidades.

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