Poderia ser o caso de acusar a excelentíssima senhora chefona do Ministério Público Federal (MPF), que ganhou importância enorme desde a Constituição de 1988, a ponto de despertar a ira de juízes do STF, como o colega de Fachin, embora não se possa dizer que sejam alinhados, Gilmar Mendes. Ela assumiu o poderoso posto no lugar de Rodrigo Janot, conhecido por sua militância petista e pela autoria intelectual da arapuca em que caiu o ex-presidente Michel Temer no famoso teretetê de pé de orelha que manteve na garagem do Jaburu com o marchante goiano Joesley Batista. A divulgação da gravação do papinho de porão tornou o ex-presidente emedebista um típico pato manco, definição que ianques dão a chefe político que mantém o cargo, mas deixa de exercer todo o poder que este lhe delega. Mendes, como é público e notório, trocava figurinhas com Temer na copa presidencial ou no jato transatlântico da Presidência da República. E foi por em tais encontros que indicou a citada Dodge. Esta foi nomeada e esperava-se que poupasse tanto padrinho quanto patrão. No entanto, ela não agiu como se lhes devesse o belo emprego pelo menos num caso, que especificamente dizia respeito ao então presidente que a escolheu após consultar a lista tríplice encaminhada ao chefe do governo.
Antes, seu antecessor, Rodrigo Janot, mandou a Polícia Federal (PF) abrir dois inquéritos contra Temer, um deles sob a acusação de ter recebido propinas à guisa de doações eleitorais de empresas beneficiadas no decreto de concessões do Porto de Santos. Sob pressão do relator do caso, Luís Roberto Barroso, madame fez o que era esperado: deu-lhe prosseguimento.
O caso da Lava Jato, porém, é mais complicado. A operação dos procuradores de Curitiba, coordenada pelo procurador Deltan Dallagnol e antes chefiada pelo juiz Sergio Moro, substituído por Luiz Antônio Bonat para ocupar o Ministério da Justiça, é muito popular e ela usou todo o charme possível de seus olhos claros e sua fala plácida para evitar que os implacáveis perseguidores da verdade tivessem acesso à sua indiferença ao trabalho aclamado dos colegas, perseguidos com insultos e acusações pelo próprio patrono. A seis meses de encerrar seu mandato, contudo, o que ela tentou esconder em belas e bem-intencionadas perorações veio à tona.
É que Fachin, seu colega de ofício de origem, mas diligente nos processos que relata como ministro do STF, recorreu a informações matemáticas para dimensionar sem dó nem jeito a trava imposta pela permanente colega de sessões. Além do acordo citado acima, Raquel Dodge submeteu à apreciação do Supremo, em janeiro, outro acordo de colaboração, firmado dessa vez com o ex-presidente da OAS, Léo Pinheiro. Aquele mesmo, preclaro leitor, célebre por ter passado dois anos sob negociação, por causa da citação do nome do ministro do STF e seu atual presidente, Dias Toffoli. Mas a peça ainda não foi homologada. “Em 2019, não houve homologação”, esclareceu o minucioso Fachin.
Depois do documento produzido pelo relator com dados e números, não dá mais para mascarar o freio que ela impôs à operação policial e judicial que levou à prisão um dos empresários mais ricos do País e o mais popular ex-presidente da República: “Num balanço que fizera de sua gestão em outubro do ano passado, Dodge contabilizava 46 denúncias, mas apenas quatro se referiam ao maior escândalo de corrupção do país. Certos casos cobravam reação”. Os assessores de madame atribuem sua freada a prudência e comedimento. Mas os colegas da atingida Lava Jato discordam de maneira furiosa dessa interpretação.
Não podia ser diferente. Desde as manifestações de rua pelo impeachment de Dilma, em 2016, os policiais, procuradores e juízes da operação são saudados pelo povo como se fossem uma espécie do que nossos ancestrais chamavam de “ai-jesus”. Em particular, o juiz que a comandava, Sergio Moro, e o coordenador da força-tarefa, Deltan Dallagnol. Quando os maiorais da empreita e da pistolagem política caíram, abatidos por delações premiadas, denunciados e processados passaram a usar artilharia pesada para abater os “aventureiros” da devassa.
Com o maior dos empreiteiros, Marcelo Odebrecht, e o mais popular dos chefões da política, Lula, atrás das grades. os suspeitos juntaram-se aos que ainda não tinham aparecido no noticiário, mas temiam que, mais dia, menos dia, pudessem dar de cara com um federal à porta de casa cedinho. E o combate aos intrusos passou a ser planejado para não deixar ponto sem nó nem espaço vazio. Aí foi que a porca torceu o rabo e a vaca foi para o brejo. Antes de atolamento, salve-se quem puder e quem avisa amigo é.
Com a vitória, inesperada no começo do ano passado, do candidato à Presidência da República sem rabo preso à mostra, Jair Bolsonaro, os ameaçados pela guilhotina deram as mãos aos companheiros ao lado, no Poder Legislativo, e aos juristas dos coquetéis no lago abrigados pelos chefões de antanho nos píncaros do Judiciário. Enquanto os altos tribunais davam habeas corpus com impressionante abundância, as raposas dos galinheiros devassados passaram a planejar o contra-ataque. Raquel Dodge cumpriu até agora com galhardia o seu papel na farsa. Terá até setembro, quando será substituída, é o que se espera, para continuar a tarefa.
No Poder Legislativo o combate tem prazo mais longo. O presidente Jair Bolsonaro, ungido pelo voto, levou o herói popular Sergio Moro para chefiar o combate à corrupção e ao crime organizado no Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Cabe aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, ambos do DEM, prosseguir com as tarefas nas quais foram abatidos em meio à liça os emedebistas Romero Jucá, pelo eleitor de Roraima, e Renan Calheiros, pelos pares do Senado.
Maia tem feito o possível para repetir a façanha da noite dos ferros torcidos, na qual a Câmara virou pelo avesso as 10 Medidas contra a Corrupção, da lavra da Lava Jato. E entregou a bandeira de Sergio Moro ─ o pacote anticrime ─ para seus mastins mastigarem. O ministro estrilou, foi chamado de empregadinho de Bolsonaro e apelou para o Senado, na cumbuca emborcada de Niemeyer, ao lado. Enquanto a tropa de Maia intromete o pacote de segurança pública do ministro do STF Alexandre de Moraes para desvirtuar o texto original, a senadora Eliziane Gama deu entrada de seu conteúdo no debate do Senado. A ideia é inventar um jeito de dar um drible da vaca na patota da Câmara, no prato sem pão na mesa.
Em ambas as Casas há assustados com grande capacidade de influenciar pessoas e fazer aliados. Afinal, os dois presidentes são suspeitos: o da Câmara é o Botafogo da Odebrecht e o do Senado tem rolo investigado no STF. Não faltam indícios, pois, de que também no primeiro há percalços para a aprovação do pacote anticrime, que, pela lógica, seria a prioridade zero (antes de um) do governo federal. A revista Crusoé, a mesma que revelou que o presidente do Supremo tem codinome no propinoduto da empreiteira teutobaiana (“amigo do amigo de meu pai”, apud Marcelo Bahia Odebrecht), revelou que aliados de Alcolumbre dão como certa a retirada de alguns pontos da proposta. E “um dos itens do pacote que senadores querem excluir é o que cria a figura do informante do bem”. Afinal na Realpolitik de carne no prato, farinha na cuia, qualquer elemento do bem sempre será tratado como inimigo figadal. E haja fígado!
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