Neste momento aqui, nestes “tristes trópicos”, bem longe dos EUA e, ao que tudo indica, ainda mais longe de Deus, radicalizando a frase famosa de um presidente esquerdista do México, Lázaro Cárdenas (“pobre México, tan cerca de los Estados Unidos y tan lejos de Dios“), Bolsonaro parece metido numa camisa de sete varas sobre a era de nossa política. Na condição de único candidato isento de acusações da Operação Lava Jato e, portanto, favorito à vitória que acabou se confirmando, utilizou a marca da “nova política” contra a “velha”, comprometida pela ineficiência e, sobretudo, pela corrupção. No governo, ele e seus devotados fiéis das redes sociais repetem o refrão a todo momento. Mas a vida como ela é começa a lhe impor os fatos de um regime em que a Presidência, que ele ocupa legitimamente, pode muito, mas não pode tudo.
Aí ele, que já reprimiu meu desejo de apelar para o Vossa Excelência, que acho simpático, tendo proibido a expressão majestática por decreto, com pouquíssima chance de vê-la respeitada, já se viu obrigado a curvar-se não propriamente a “Sua Excelência o cidadão”, mas ao mais poderoso primado dos fatos. Esnobou a disputa pela presidência da Câmara e, com disfarçada simpatia de seu chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, viu o deputado fluminense Rodrigo Maia ascender à chefia da Casa nadando de costas. Com tríplice apelido ─ Botafogo no propinoduto da Odebrecht, Bolinha pela semelhança física com o personagem de Marge nos quadrinhos e Nhonho, o filho de Seu Barriga na série mexicana de TV Chaves ─, o filho do ex-prefeito César Maia é tudo o que não se pode confundir com a “nova política” dos sonhos do presidente. Até porque tem a companhia do pai num inquérito que investiga delito similar ao de Onyx: caixa 2 em doação de campanha ─ que o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, o ex-chefe da Lava Jato, quer criminalizar.
Logo depois, como quase toda a população brasileira, acompanhou o Fla-Flu da eleição para a presidência do Senado e comemorou a derrota do mais odiado dos caciques da “velha política”, Renan Calheiros, e para mais um membro do DEM: Davi Alcolumbre. É possível que tenha comemorado até a metáfora bíblica da pedrada no cocuruto do gigante Golias…
Com um acréscimo de sorte: o amapaense foi lançado e festejado por Onyx. Mas o moço está longe de merecer a aprovação na entrada do clube da “nova política”. Um inquérito que protagoniza foi arquivado pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de seu Estado, mas o Ministério Público Eleitoral (MPE) já o pôs no elevador para julgamento em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF). Para quem ainda se lembra da boutade de um filho de Bolsonaro ─ Eduardo, deputado federal por São Paulo ─, Alcolumbre poderia tê-lo contrariado ao mandar para o cesto de lixo mais próximo da Mesa da Casa o pedido de abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dita da Lava Toga. Se bem que, para tanto, contou com a omissão de outro filho do presidente, o senador Flávio, que não assinou o pedido para sua instauração, em nome da estabilidade da República e das boas relações entre os Poderes. Eduardo não disse numa palestra que para fechar o STF bastaria “contar com um jipe, um soldado e um cabo”?
Mais de cem dias depois da posse, ao que tudo indica, Sua Excelência (oh, desculpe) pode estar começando a perceber que, para a dita “nova política”, mais dura, mais difícil e mais perigosa do que a “velha” é aquilo que os teóricos chamam de Realpolitik. Nem precisa traduzir, não é mesmo? O pior é que o próprio sumo pontífice da “nova política” tem feito a Nação relembrar seus velhos tempos de praticante da “velha”, agora em nome da real. Ah, vamos esquecer o alemão, porque era a língua em que escrevia o jornalista Karl Marx, que não suscita muitas simpatias pras bandas do Palácio do Planalto, certo?
Nem precisa puxar muito pela memória. Bolsonaro, que nomeou o novo presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco (com sobrenomes do primeiro chefe do regime militar com um ele a mais, que o presidente venera), pediu encarecidamente que este suspendesse o aumento de 5,7% no preço do diesel, contrariando um dos mais decantados dos dotes da “nova política” ─ liberalismo na economia e conservadorismo nos costumes, ou não era? Seu “posto Ipiranga”, ao qual sempre recorreria em casos da ciência de Keynes, estava fora do alcance, nos Estados Unidos, em viagem de trabalho. E Paulo Guedes não foi sequer consultado.
A decisão de desautorizar a política de preços adotada pela Petrobras, empresa aberta, com controle acionário do cidadão brasileiro, representado pelo presidente, é mais coerente com antigas posições do deputado federal do que com o candidato que fazia e o presidente que continua fazendo juras de amor ao mercado. E isso leva a uma pergunta inquietante que não pode calar: até que ponto na calada da noite, a sós com o travesseiro, o parlamentar no exercício da Presidência é mais ouvido pelo chefe do governo e representante da Nação como sócio majoritário da maior empresa do País do que seu sempre citado tutor em economia?
Não foi esquecido ─ nem poderia sê-lo ─ que só num governo anterior ao dele a submissão da petroleira ao mercado na política de preços de um de seus principais produtos foi violada de forma ostensiva: no da petista Dilma Rousseff, pior lembrança impossível. Dilma em pessoa reforçou tal conexão ao sinalizar seu apoio, no estilo confuso de hábito, que, aliás, serve de inspiração a seus adversários do extremo oposto que agora defendem encarniçadamente a decisão presidencial. “Não é recuar do aumento de 5,7%”, pontificou a petista. “É impedir que a lógica da gestão da Petrobras seja submetida à lógica de curto prazo da especulação financeira”, completou em seu Facebook madama ex-“presidenta”.
Não foi à toa que a deputada mais votada da História, Janaina Paschoal (PSL-SP), com a lucidez, a objetividade e a clareza que lhe são próprias, enfrentou a questão em seu Twitter. “O L de liberal já não é tão liberal assim. O PSL está cada vez mais parecido com o PT. Eu digo e repito: partidos são verdadeiras prisões. É uma lástima!”, disparou. Ao abordar a possível mudança de nome de seu partido, ela não hesitou em apontar sua semelhança, até no discurso, com o PT derrotado nas urnas.
Mais do que a intervenção ─ que, como não podia deixar de ser, está sendo ferozmente negada nos pelotões de choque das redes sociais bolsonaristas ─ preocupa, contudo, o fato de ele ter atendido a uma pressão explícita dos caminhoneiros, que pararam o País em maio passado e obtiveram concessões absurdas e lesivas ao Estado de Direito no governo Temer, que comprovou ser mais temeroso do que temerário. Desta vez, seria injusto usar a justificativa do capitão com a velha política. No caso, por incrível que pareça, tem que ver com a “novíssima”. Os atendidos têm comunicação direta com Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil, padrinho do novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, e dos presidentes da Câmara e do Senado. A pressão de quem ganhou a parada é direta no computador dele no Planalto. Seria ingênuo achar que Bolsonaro poderia impedir que os caminhoneiros bloqueassem as rodovias, como já o fizeram, para paralisar o País, pois atende a uma parte de seu eleitorado, cujas mensagens lhe são levadas pelo único ministro indemissível da Esplanada, que não é Paulo Guedes nem Sergio Moro, mas o chefe da Casa Civil.
Com a devida vênia de quem esperava “a Pátria acima de tudo e Deus acima de todos”, está ficando claro que a política nem nova nem velha vigente após os 57 milhões e quase 800 mil votos dados a Bolsonaro corre o risco de estar sendo praticada de dentro da boleia de um caminhão. E nem sequer este escriba, filho de caminhoneiro e chefe político, pode festejar e se orgulhar da nova era que surge no horizonte neste instante. Como avisou Clinton aos eleitores: “Esta é a política real, seu bobo!”. Aliás, cabe explicar que o bobo em questão sou eu, tá?
Estadão