O Rio é o lugar onde mais se sente o peso do não-governo. O morador da cidade tem a sensação cotidiana de que não existe prefeito. Na chuva que desabou sobre o Rio matando, ilhando, destruindo o patrimônio das famílias, ameaçando os moradores, nos últimos dias, isso ficou mais concreto. O governador acha que não lhe cabe fazer juízo de valor sobre o assassinato com 80 tiros de uma pessoa inocente, na frente do filho de sete anos, porque “não é juiz da causa”. Deputados foram empossados na cadeia, dois últimos governadores estão presos. Eventos insólitos, declarações abusivas e agressões diárias ao cidadão do Rio são insultos que temos tolerado, mas não devíamos.
É comum se falar sobre o peso do governo. Ele cobra impostos demais, a burocracia é enervante, as decisões são erradas. No Rio se sente isso também, mas o mais forte é o sentimento da ausência, da não existência de uma ordem pública mínima. As autoridades não executam as tarefas para as quais foram eleitas. A dúvida é por que se candidatam?
As cidades bem geridas seguem hoje uma agenda de proteção contra a crise ambiental e climática. Há uma lista de providências nos centros urbanos para enfrentar o aumento da frequência e do rigor dos eventos climáticos extremos. Uma cidade cheia de encostas à beira-mar, onde historicamente a ocupação do solo foi feita de forma desordenada, tem que se preparar em dobro. As respostas do prefeito Marcelo Crivella nesta crise, como em qualquer outra, são revoltantes. A prefeitura tinha, na conta dele, 20 funcionários na rua, eles não chegaram ao local porque saíram tarde. Sobre ele e seu secretariado, disse que trabalham muito e por isso demoraram a aparecer. Por fim, 24 horas depois de iniciada a tragédia ele admitiu que não foi prudente.
A imprudência da prefeitura tornou a vida do carioca um inferno por 24 horas, destruiu bens de famílias, matou pessoas afogadas, soterradas, eletrocutadas. Ele não investiu em drenagem e contenção de encostas e deixou dinheiro federal intocado porque não foi capaz de apresentar projetos. A incompetência matou.
Todas as autoridades foram omissas. O governador Wilson Witzel criou o gabinete de crise apenas depois das angustiantes 24 horas de chuva. O presidente Jair Bolsonaro, sempre tão ativo em seus comunicados via mídia social, ficou em silêncio. Seus loquazes filhos, também. Bolsonaro marcou vinda ao Rio, mas para uma reunião com pastores.
O que torna o momento atual mais perigoso é que se somam a inépcia com os focos de insanidade no governo federal. Desde que assumiu, o governo tem negado através de ministros como o do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o consenso científico sobre as mudanças climáticas como resultado da ação humana. O chanceler define as preocupações com a mudança climática como “climatismo”, que na cabeça dele faz parte da conspiração do marxismo para transferir poder do Ocidente para a China. Isso seria só mais uma loucura se não tivesse efeito concreto. O Brasil começou a se isolar dos centros onde se discute a sério os cenários de aquecimento global. Uma das alas desse debate é em torno de como preparar as cidades. O presidente Jair Bolsonaro recusou sediar a COP e disse que “por enquanto” o Brasil fica no Acordo do Clima. Quem não leva a sério o que está ocorrendo com o clima tomará decisões insensatas em todas as áreas: da energia à conservação, da mobilidade urbana à produção agrícola, das florestas às cidades, da economia à saúde. Os climatologistas estão dizendo que precisamos mudar radicalmente a maneira como estamos no mundo.
Witzel exibiu uma forma absurda de entender o seu papel de governador na outra tragédia da semana, aquela em que forças do Exército deram 80 tiros contra o carro onde estava o músico e segurança de creche Evaldo Rosa. Suas últimas palavras foram: “por que o quartel fez isso?” O governador disse que não lhe cabe “fazer juízo e muito menos qualquer crítica a respeito dos fatos”, porque “não sou o juiz da causa”. Ele não entendeu que deixou de ser juiz? É o governador de um estado onde um inocente foi fuzilado na frente da família sem qualquer motivo.
A crise no Rio tem contornos dramáticos. Não é tolerável o que temos tolerado.
O Globo