O general Leônidas Pires Gonçalves comandou o Exército de 1985 a 1990. Foi um daqueles chefes militares que viram de tudo. Em 1945, estava na cena da deposição de Getúlio Vargas. Em 1961, na escuta dos telefonemas de João Goulart durante a crise da renúncia de Jânio Quadros. Em 1964, viu quando o general Costa e Silva começou a emparedar o marechal Castelo Branco.
Em 1984, foi um dos generais que garantiram a eleição de Tancredo Neves. Como ministro do Exército de José Sarney, manteve a disciplina na tropa, inclusive quando enquadrou o jovem capitão Jair Bolsonaro, que emergia como uma espécie de liderança sindical militar.
Leônidas ensinava: “Quartel não tem algemas”.
Ele era o ministro do Exército em 1988, quando mandou uma tropa para desocupar a usina de Volta Redonda, ocupada por grevistas, e morreram três operários. Passaram-se 31 anos e uma patrulha do Exército disparou 80 tiros contra o carro que conduzia uma família e matou o motorista.
“Quartel não tem algemas”, os soldados não são profissionais treinados para operações policiais e, quando acontece uma dessas tragédias, quem vai para a frigideira são recrutas, um sargento ou, no máximo, um jovem oficial. Em menos de 24 horas o comando do Exército prendeu dez militares envolvidos na fuzilaria do Rio. A informação inicial, falsa, de que a patrulha respondeu a “injusta agressão” foi substituída pelo “compromisso com a transparência”.
Há épocas em que as eternas vivandeiras pedem aos militares que façam isso ou aquilo. A ideia de botar a tropa nas ruas do Rio podia parecer “golpe de mestre”, mas é apenas a criação de novos problemas. Passa o tempo, as vivandeiras vestem as camisetas da ocasião e mandam a conta para os quartéis.
Jair Bolsonaro entrou no Palácio do Planalto com um discurso popular de defesa da lei e da ordem, confundindo-se com as Forças Armadas. Há dias o presidente disse: “Nasci para ser militar”. Só ele pode falar da própria vocação, mas, de cadete a capitão, foi militar durante 14 de seus 64 anos de vida e deixou a carreira marcado por 15 dias de prisão por indisciplina.
Daí em diante, Bolsonaro foi parlamentar por 29 anos. Parece mais precisa a avaliação de seu vice, Hamilton Mourão, para quem ele é “mais político do que militar”.
O general Mourão formulou uma perigosa profecia: “Se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas, daí a nossa extrema preocupação”.
Isso não deve acontecer. Primeiro, porque as Forças Armadas não são o governo. Há cerca de cem militares na nova administração, mas quase todos estão na reserva, inclusive Mourão. Apesar de poucas manifestações impróprias durante a campanha eleitoral, nos quartéis prevaleceram a disciplina e o silêncio. Três dos quatro comandantes do Exército deste século não disseram uma única palavra. Ganha um fim de semana em Caracas a vivandeira que lembrar os nomes desses generais.
Nenhuma conta pode ir para as Forças Armadas, a menos que se trapaceie o jogo, coisa que correu no ocaso da ditadura, quando o andar de cima vestiu camisetas amarelas, foi para a campanha das Diretas e jogou o entulho do regime na porta dos quartéis.
Quem namora a ideia de expansão das atribuições dos militares sonha com impasses, talvez um conflito com o Congresso. Nesse sonho, “se o governo falhar”, as Forças Armadas ficariam com a conta. A conta será do governo. Os militares, calados, estão na mesa ao lado.
Folha