Os mais entusiasmados vislumbram uma emulação da mítica democracia direta, em que os cidadãos poderiam debater e votar com um clique em cada decisão cotidiana do Executivo ou do Legislativo, viabilizando-se a reaproximação entre os governados e o exercício do poder, aos moldes da Grécia Antiga.
Estaria, então, em cheque nosso sistema?
Tal hipótese remete aos motivos que levaram as nações ocidentais a adotarem, a partir do século 19, a democracia representativa, que permitiu a implantação do sistema em Estados com extenso território e população numerosa.
Além de contornar o absurdo logístico que seria realizar assembleias com milhões de pessoas dispersas em países continentais, a delegação de poderes a representantes eleitos seguiu a lógica da especialização, sendo razoável que o cidadão comum dedicasse a maior parte do seu tempo ao ofício e demais tarefas diárias relegando a atividade política com agentes escolhidos periodicamente.
Se hoje a noção de espaço foi, em grande parte, atenuada, persiste a barreira temporal. Alguns segundos são suficientes para que as pessoas publiquem suas posições sobre um tema nas redes sociais, mas conclusões demandam debates. A dinâmica da Câmara dos Deputados, onde 513 parlamentares têm direito a voz e voto, dá uma pista sobre a dificuldade de deliberações alcançarem consensos e sínteses.
Remanesce, portanto, a contradição: quanto mais participação cidadã tiver um governo, menor será sua eficiência na tomada de decisões, devido aos custos e demoras inerentes ao debate ampliado. Trata-se de conclusão angustiante, já que o regime é justamente alicerçado na ideia de poder popular.
E se a inteligência artificial for capaz de retirar, em poucos minutos, comandos coerentes a partir da análise de todos os manifestos individuais? Tenho a impressão de que, ainda assim, esbarraríamos na elevada complexidade da administração do Estado contemporâneo, cujas decisões demandam racionalização e especialização. Quem teria conhecimento técnico, disponibilidade de tempo e ânimo para se envolver e opinar com responsabilidade sobre todos os temas debatidos em âmbito público?
É evidente o papel que as redes sociais assumiram na dinâmica social e no debate político. Elas devem, por isso, ser consideradas pelos governantes, por ressoarem opiniões de grupos de interesses, corporações e influenciadores. São como extensões das convencionais audiências públicas, em que se coletam sugestões para aperfeiçoamento de projetos e programas de governo.
O que parece não ter lógica é tomar essas plataformas como instrumentos de democracia direta, num simulacro de descentralização de poder. É desleal ou ingênuo por parte dos eleitos usar resultados de enquetes ou análises de big data, por exemplo, para justificar decisões políticas e se autoproclamar ouvinte do povo. Trata-se de sub-rogação ilegítima do poder a um grupo indeterminado e desconhecido, cujas fotografias podem esconder apenas emaranhados de bytes, sem CPF nem título de eleitor.
O papel que a internet assumiu na evolução do sistema democrático fascina. Já tivemos amostras do potencial das redes em processos eleitorais e no permanente debate político que se trava no campo digital, em uma espécie de holograma da Ágora.
Os próprios mecanismos que a Constituição da República estabelece para o exercício direto do poder, como plebiscito, referendo e iniciativa popular, ganham potência e novos horizontes. Contudo, é desarrazoado pressupor que, no Brasil de 2019, os indivíduos ativos nas redes sociais representam todo o conjunto de eleitores. Se assim o fizermos, aqueles que “piarem” mais alto estarão sequestrando a atenção dos agentes políticos e conduzindo o Estado.
Muitas necessidades básicas do país ainda são bem concretas e demandam a formulação e articulação de políticas públicas nos moldes estabelecidos pela legislação. Os representantes, felizmente, estão limitados pelo ordenamento jurídico, devendo honrar cada voto e se responsabilizar pelas decisões que tomam. O mundo pode estar virtual, mas a vida é real.
Poder 360