Passei o carnaval entre Juazeiro, na Bahia, e Juazeiro do Norte, no Ceará. De Juazeiro a Juazeiro. Uma bela viagem, sugestão do fotógrafo Orlando Brito.
Apesar da intensidade do trabalho, tentei acompanhar o carnaval brasileiro. Confesso que, nessa época, pouco tenho a ler nos jornais. Não me levem a mal, mas falam de pessoas que não conheço, fazendo confissões que não me interessam. Sou um pouco fora do ar em certos temas do show business.
Sinto-me como se estivesse nos versos de Manuel Bandeira: “Lá a existência é uma aventura/ De tal modo inconsequente/ Que Joana a Louca de Espanha/ Rainha e falsa demente/ Vem a ser contraparente/ Da nora que nunca tive.”
Nas noites do sertão, foi possível ler a análise que Milan Kundera faz do romance “A montanha mágica”, de Thomas Mann.
Tem tudo a ver com uma certa decadência no ar; baixarias, memes sobre dependência química, falta de compaixão com avô que perde o neto.
O livro de Thomas Mann é sobre o confronto de ideias. Brilhantes intelectuais terminam querendo se matar. Os outros personagens também mergulham num clima de irritação e agressividade.
O que o autor parece revelar é que o confronto de ideias é apenas uma máscara que esconde as emoções irracionais e violentas.
Kundera afirma sobre “A montanha mágica”: “É um grande romance de ideias mas ao mesmo tempo uma terrível dúvida sobre as ideias, um grande adeus à época que acreditou nas ideias e na sua faculdade de dirigirem o mundo.”
O romance se passa nas vésperas da Primeira Guerra. Depois disso, vieram o fascismo, o nazismo e o comunismo, que, no fundo, afirmam a mensagem da “Montanha mágica”, que se desenrola em Davos, na Suíça.
Envolto nesse clima de desalento com o poder das forças obscuras e irracionais, chego ao Rio para seguir as notícias sobre o aumento da violência, um tema importante para nós e sempre muito destacado na imprensa internacional. Só aí soube do vídeo lançado na rede por Bolsonaro.
Foi um desastre para nossa imagem internacional. Felizmente, alguns jornalistas se solidarizaram com o povo brasileiro, a vítima principal desse gesto desvairado. Na verdade, o presidente usa a mesma tática da imprensa sensacionalista: isola um fato escabroso, mostra-o nos detalhes e tempera com uma lição de moral, para atenuar a culpa da curiosidade mórbida. Mas nem a imprensa sensacionalista mostraria o que Bolsonaro mostrou.
Nas reflexões que fiz aqui sobre jornalismo, afirmei que era falsa a afirmação que isto é mostrar a verdade. Na minha opinião, isto é mascarar a verdade. Estamos mais próximos dela quando avaliamos o todo, e não apenas as partes.
O Brasil é surpreendente, mas jamais pensei numa situação dessas: um presidente da República postar um vídeo pornográfico e perguntar por golden shower no tuíte seguinte.
Suponhamos que fosse um presidente conservador querendo combater pela moralidade. Que visão pedagógica é essa? Se é a visão de Bolsonaro, podemos esperar nas aulas de Moral Cívica um departamento de sadomasoquismo; outro, de sexo grupal. Seria preciso mostrar as cenas para dizer que as condena?
Tenho procurado fazer uma oposição construtiva. Tive uma boa convivência com Bolsonaro, nos últimos mandatos; respeito seus eleitores e quero que o Brasil saia dessa crise. Continuo querendo isso, mas o quadro fica mais claro para mim.
Existe um governo tomando conta do governo. Sua tarefa é evitar os desvarios, sobretudo na política externa. Li que cuidará também da família do presidente. Agora, terá de cuidar de Bolsonaro.
Não é confortável, numa democracia, que um núcleo militar tenha esse poder. Será preciso que o próprio Congresso perceba a importância do momento e procure estar à altura. Os militares não são atores únicos numa democracia. Isso é apenas outra bobagem de Bolsonaro.
Que se faça um trânsito seguro até 2022, quando então poderemos reequilibrar os poderes. Prever cenário no Brasil demanda coragem. Construí-lo, mais ainda.
Considero a divulgação do vídeo um marco na história do governo Bolsonaro. E na minha cabeça: nunca um presidente fez isso. É a transposição de um limite válido para todos na vida pública. Certamente, pagará um preço. No mínimo, a vigilância maior de uma força-tarefa destinada a evitar que tente de novo suicídios políticos.
O Globo