A história é quase inacreditável. Experimente contar seus detalhes para um jovem na casa dos 20, 25 anos. Ele vai dizer que é carnaval, e você bebeu demais. Um presidente da República dançando num camarote da Sapucaí com uma modelo sem calcinha? Conta outra. E pior, fotografado de um ângulo em que toda a intimidade da moça ficou exposta ao lado de um presidente em êxtase. Mentira? Claro que não. Você sabe que não. Era assim o carnaval do Sambódromo dos anos 80, 90 e início dos 2000. Uma alegria devassa insuperável.
No dia seguinte, os jornais estamparam a foto do presidente Itamar Franco com a modelo Lilian Ramos, alguns nas suas primeiras páginas. O que fez o presidente? Nada. Não acusou a moça, não ficou irado, não veio a público atacar a permissividade do carnaval. Ao contrário, à noite ligou para Lilian e tentou iniciar um romance com a moça. Não colou. A modelo queria apenas a publicidade da companhia presidencial num desfile da Sapucaí.
Outra história inacreditável vimos na noite de terça-feira, no Twitter do presidente Bolsonaro. A cena escatológica distribuída por ele entre seus 3,6 milhões de seguidores mostra como Bolsonaro pensa, ou como pensa pequeno. Imaginar que aquelas imagens representam os blocos do carnaval é não enxergar um palmo à frente de seu nariz. Não precisava ir às ruas para entender como funcionam os blocos, bastava ficar meia hora assistindo à GloboNews.
A nudez dos tempos de Itamar era dona absoluta do espetáculo das escolas de samba. Havia até um adereço chamado tapa-sexo, que era uma peça minúscula que se encaixava não sei bem onde e que deixava protegida de olhos alheios apenas a genitália da mulher que o portava. Além das bundas totalmente desnudas, os seios também eram livres para se manifestar como bem entendessem. O Brasil inteiro assistia àquela desabusada nudez desfilando nas telas da TV.
Hoje, não. Dois ou três pares de seios nus foram tudo o que se viu nos dois dias de desfile da Sapucaí. A nudez na Avenida era absolutamente aceitável, como hoje é aceitável a seminudez da garotada nos blocos. O discurso é o da liberdade, do meu corpo, minhas regras, do não é não. E, portanto, tudo é saudavelmente possível. Cada um sai como quer e, com algumas raras exceções, todos e todas são respeitados por todos.
A nudez nas escolas aos poucos desapareceu devido a críticas de que as mulheres eram exploradas. As mesmas vozes que no passado criticavam a nudez das passistas e rainhas das baterias hoje apoiam a liberdade individual de cada mulher se vestir ou se despir como bem entender nos blocos ou fora deles. Nada contra, pelo contrário. Impossível discordar ou não apoiar incondicionalmente todas as campanhas de afirmação e valorização da mulher.
Ontem, as meninas das escolas de samba estavam sendo usadas pela indústria do carnaval, e sua nudez era gratuita e permissiva. Hoje, com um importante gap geracional, a nudez das meninas dos blocos ou do uso do corpo feminino pela mulher de acordo com as suas regras é uma questão de afirmação de gênero.
As duas lógicas devem ser entendidas como expressão de sua época. Se no passado a nudez podia ser chamada de vulgar e machista, hoje pode ser considerada rebelde, libertadora e feminista. Com objetivo igual, os dois movimentos percorreram ou percorrem caminhos inteiramente distintos para alcançá-lo. Portanto, é justo afirmar que o vista-se de 20 anos atrás tem o mesmo significado do dispa-se de hoje em dia.
Da mesma maneira, a homossexualidade se expressa e se reafirma nos blocos. Normal e saudável. Uma festa como o carnaval serve para todo tipo de exaltação. Tente se lembrar de um só carnaval em que você não viu manifestações de afeto gay despudoradamente livres. Foi sempre assim. E continuará sendo assim, quer o presidente do Brasil queira ou não. Hoje, aliás, o amor LGBTQIA+ não precisa do carnaval para se mostrar. O que Bolsonaro fez foi explorar um detalhe tão pornográfico quanto mínimo e insignificante da festa, escancarando mais uma vez suas limitações sociais e cognitivas.
O Globo