A proposta de reforma da Previdência é boa. O governo é ruim. Não se trata de ser sentencioso sobre o futuro —que só pertence a Deus, como dizem, porque a ninguém foi dado o dom da predição. A coitada da Cassandra, que recebeu esse presente literalmente de grego, conseguia, sim, enxergar o amanhã, mas ninguém acreditava nela, daí que fosse vítima de uma maldição, não de um privilégio. Cassandra evidencia que é preferível —e até mais rentável— ser um otimista abobalhado a um realista incômodo.
Na sexta passada (15), lembrei aqui o poeta Constantino Kaváfis e o texto “À Espera dos Bárbaros” —aqueles que chegariam para responder a todas as irresoluções dos romanos. Assim estamos nós com a reforma da Previdência. A mudança passou a ser uma condição necessária para o país ambicionar um outro padrão e um outro patamar de desenvolvimento, com mais inclusão e equidade social. Mas ela está longe de ser uma condição suficiente. É mentirosa a inferência de que todas as nossas iniquidades derivem das injustiças previdenciárias, que são flagrantes, ainda que o modelo em curso possa ser acusado de tudo, menos de justo.
É confortável e errado estabelecer um nexo causal entre um governo que se revela patologicamente reacionário e a sua determinação de promover a reforma, como se esta fosse a expressão econômica, material propriamente, de uma inflexão política que requer, para se efetivar, o que é lido como a espoliação dos mais pobres, a cassação de direitos, a marginalização dos oprimidos. Há uma mentira factual irrespondível nessa hipótese: a espinha dorsal do texto está na diminuição de privilégios brutais, embora os pobres também sejam alcançados pelas medidas.
Eu estaria intelectualmente mais tranquilo, com menos inquietações porque conheceria a resposta, se abraçasse essa perspectiva, que me parece ser a de alguns analistas de esquerda, ainda que peça escusas pelo reducionismo inevitável. Vislumbro uma contradição entre a reforma e o governo onde eles enxergam uma relação de congruência ou de causa e efeito: sim, reacionários, na caricatura e na vida real, estão sempre prontos a cassar direitos. Mas será ela um capítulo da luta de classes em desfavor dos mais pobres? É sustentável a tese de que é um desdobramento inevitável da vitória da extrema direita? O modelo que temos não traz em si, consolidada, a derrota do oprimido?
Reconheço, aponto e combato o caráter “direitopata” do governo de turno —já que o termo “esquerdopata” é de minha lavra, reivindico o antônimo—, mas entendo que a reforma da Previdência, escoimados eventuais exageros, é socialmente justa e economicamente “progressista”, para quem gosta dessa palavra. E não apenas porque corta mais de quem tem mais, mas porque o déficit previdenciário consome recursos que podem e devem ser aplicados no combate às tais iniquidades.
Sustento que Bolsonaro promove a reforma da Previdência apesar do seu reacionarismo, não em razão dele. Há, nesse caso, um hiato na cadeia de causalidades.
Os que combatem a agenda obscurantista dos Vélez Rodríguez, Damares e primitivos dessa ordem deveriam é se ocupar do risco de a reforma, ainda que amansada pelo Congresso, servir de alavanca para o retrocesso. E não porque ela vai, como sustentam alguns, cassar direitos, mas porque pode efetivamente dar início a um ciclo virtuoso na economia. Cuidado! Reacionários do insucesso podem ser estúpidos. Os do êxito podem ser mais estúpidos. Dispenso-me de recorrer à história.
A boa resposta não está em atacar a mudança com o intuito de conter a vanguarda do retrocesso. Isso seria uma burrice. O sensato é reconhecer o seu domínio autônomo —e essencialmente justo—, impedindo que a reforma necessária se confunda com a pauta que pretende transformar a escola em delegacia de polícia; que defende que um homem seja um homem e sua arma; que reivindica para as forças de segurança a licença para matar. Nesse caso, refiro-me explicitamente ao “Pacote Moro”, o Bolsonaro mais ou menos letrado —menos do que dá a entender, como revela o seu estoque gramatical—, cuja palavra ainda gera assentimentos reverentes de setores que, no entanto, veem no presidente, o que é verdade, a encarnação do atraso.
Temos uma proposta boa de reforma e um governo ruim. Porque ela é boa, não deveria ser desfigurada. Porque ele é ruim, não deve ser poupado.
Folha