Por que tantos entre nós fingem normalidade, como se os Poderes da República estivessem a viver dias tensos, mas dentro da normalidade?
É que a reforma da Previdência chega logo.
Por que se assistiu àquele espetáculo deprimente no Senado, com o regimento interno sendo rasgado muitas vezes, num processo eleitoral que, de modo deliberado e acintoso, ignorou uma decisão do Supremo?
É que a reforma da Previdência chega logo. E, depois dela, o país não será o mesmo. Ela vai ditar as novas relações do Congresso com o Poder Executivo.
Por que tanta apatia de algumas vozes antes indignadas com o autoritarismo petista e que tinham até certa admiração por um certo Reinaldo Azevedo, embora pudessem não entender direito o que ele escrevia nem por quê?
É que a reforma da Previdência chega logo. Ela submeterá as questões relativas à democracia a uma nova clivagem, de sorte que equacionar o déficit do setor e o rombo do Orçamento pode perfeitamente tomar, nas boas consciências, o lugar antes reservado a algumas abstrações que nos aprisionavam a uma agenda velha, a exemplo das liberdades individuais.
Por que tanta gente boa silencia quando o ministro da Justiça resolve introduzir no Código Penal a licença para matar, não distinguindo o aceno à barbárie da legítima defesa e da garantia da ordem?
É que a reforma da Previdência chega logo. Ela vai liberar os recursos para que se construa um novo país, e aquele “excesso escusável” criado pelo digníssimo ministro cederá lugar aos mansos de espírito. Até lá, seremos obrigados a matar e a empilhar corpos, como ocorreu no morro do Fallet, em Santa Teresa, no Rio. Ele combate a corrupção. E isso pode conviver com a morte de alguns pretos ou com lobistas da indústria de armas a frequentar o Ministério da Justiça sem previsão na agenda.
É que a reforma da Previdência chega logo. Viveremos finalmente sob o império das leis de mercado. Ainda que se tenha de fazer concessão ao mercado das leis.
Por que esses tais mercados não veem problema em que o partido do presidente seja um vistoso laranjal? Por que já não parece tão grave que um filho do presidente chame de mentiroso um ministro de Estado, gravando uma conversa do próprio pai com o dito-cujo e divulgando-a na internet, a evidenciar que ainda não se tem um governo, mas uma bagunça que só não degenera em anomia porque um pouco nos resta da burocracia virtuosa, que mantém o Estado, ainda que mambembe, de pé? É que, santo Deus!, a reforma da Previdência chega logo. E, depois dela, tudo vai virar suco.
Por que são poucos a se escandalizar com as sucessivas evidências de proximidade, para empregar uma palavra neutra, entre um senador da República, filho do presidente, e as milícias, que aterrorizam o Rio? É que a reforma da Previdência chega logo. E ela terá o poder de reescrever biografias.
Por que até pessoas de boa-fé aquiescem com uma tal “Operação Lava Toga”, que tem o intuito claro de constranger o Supremo e submetê-lo aos interesses do Executivo, a exemplo do que se dá nas genuínas ditaduras do mundo? É que a reforma da Previdência chega logo. E aqueles senhores não podem ser entraves ao bem do Brasil.
Escrevo esta coluna na pegada do poema “À Espera dos Bárbaros” (abr.ai/2tvum2N), do grego Constantino Kaváfis (1863-1933). Recomendo a quem não conhece. No texto, ele imagina os últimos dias do Império Romano na expectativa da chegada dos invasores. Tudo para. Nada mais importa. Não é uma reflexão sobre a história, mas sobre a existência. No poema, os brutos não chegam. E os versos finais refletem o desalento: “Sem bárbaros o que será de nós?/ Ah! eles eram uma solução”.
As centenas de textos que escrevi em defesa da reforma da Previdência expressam a minha opinião sobre o tema. Mas a dita-cuja não corrige males antigos e novos que com ela não guardam relação ou correlação. Nem pode ser lida como compensação ou justificativa para a estupidez em estado puro. Anuir com a barbárie pode tornar a mudança inviável.
O país precisa da reforma da Previdência, não da insolência anti-humanista e autoritária dos bárbaros que, no caso, já chegaram faz tempo.