A pergunta, sonora e incômoda, vem atropelando a transição do governo Bolsonaro há mais de 20 dias, quando foi descoberta uma “movimentação atípica” do motorista Fabrício Queiroz, que trabalhava no gabinete do senador eleito Flavio Bolsonaro. É a maneira técnica que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) encontra para definir movimentações financeiras incompatíveis com os ganhos oficiais de um cidadão.
Por ser motorista de um dos filhos do presidente eleito Jair Bolsonaro, de quem é amigo há 40 anos, e ter depositado dinheiro na conta da futura primeira-dama, o caso ganhou dimensões políticas naturalmente escandalosas.
O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, futuro ministro-chefe da Secretaria de Governo, definiu ontem que o caso de Fabrício Queiroz “não é uma questão de governo”, protegendo assim a figura do presidente da República, delimitando o alcance do escândalo.
Tecnicamente, o General está certo. Se não é possível processar um presidente da República por fatos alheios ao seu mandato, muito menos um futuro presidente que nem mesmo assumiu o posto. Tecnicamente, no entanto, não quer dizer politicamente, e é aí que a porca torce o rabo.
Bolsonaro deu uma explicação plausível para os depósitos na conta de sua mulher. Seriam pagamentos de empréstimo particular que dera ao amigo. O filho 01 do futuro presidente, que gosta de numerá-los por ordem cronológica de antiguidade como acontece entre os militares (quem não se lembra de “pede pra sair 01”, famosa frase do Capitão Nascimento em “Tropa de Elite?”), disse desde o início do caso que a explicação deveria ser dada por Queiroz, deixando claro que não temia ser apontado como político que usava o motorista como laranja para ficar com parte do salário dos funcionários de seu gabinete, como parece ser comum na atividade parlamentar.
Jogando a bola para Queiroz, Bolsonaro e família passaram a imagem de que nada temiam da investigação. Aceitando que Queiroz desaparecesse por quase um mês, desgastaram-se, permitindo que os opositores incutissem em parte da opinião pública pelo menos a suspeita de que alguma coisa errada a família Bolsonaro fizera.
De tanto perguntarem, Queiroz afinal apareceu, para dar uma explicação marota sobre o dinheiro que circulou em sua conta. “Sou um homem de negócios, vendo carros usados”, disse ele singelamente, sem, no entanto, indicar para quem vendeu os carros, de quem os comprou e, sobretudo, porque os funcionários do gabinete de Flavio Bolsonaro depositavam todo início de mês dinheiro em sua conta. Será preciso provar que todos eles compraram carros de Queiroz.
Há um precedente famoso de explicações bizarras como essa. Durante a ditadura militar, um chefe de gabinete de um dos generais presidentes foi acusado de enriquecimento ilícito. Perguntado como explicava a súbita fortuna, o major explicou ao presidente que vendia cavalos de raça, e ainda recebeu elogios pelo “empreendedorismo”.
Acontece que os pangarés que o major vendia eram comprados a preço de puros-sangues por empresários interessados em se aproximar do gabinete presidencial. Como era tempo de ditadura, não houve investigação e a criação de pangarés continuou prosperando.
Dessa vez, Queiroz, mesmo sendo ex-militar, não terá proteção além do que a lei lhe confere. O próprio General Santos Cruz, que relativizou o caso tirando-o da alçada do governo, admitiu que merece ser investigado, a imprensa naturalmente se interessa por ele, e por ter sido funcionário da família Bolsonaro, juntamente com vários parentes, precisa ser esclarecido.
Vários presidentes tiveram a seu lado subordinados que assumiam o “lado sujo” da política, com ou sem o conhecimento do chefe, mas certamente embalados pela certeza da impunidade.
O mais famoso foi Gregório Fortunato, chefe da segurança de Getulio Vargas que acabou criando uma milícia paralela responsável pela tentativa de assassinar Carlos Lacerda, o líder da oposição. Quem morreu foi o Major Rubem Vaz, que fazia a segurança de Lacerda. Foi o começo do fim de Getúlio.
Também Lula teve seu Gregório, sem graves consequências políticas, o segurança Freud Godoy por 20 anos, que acabou ocupando cargos de assessor especial do presidente da República e se envolveu em pelo menos dois grandes escândalos:o mensalão e o Dossiê dos Aloprados.
O Globo