2018, o ano em que a mentira predominou. Por Pedro Doria – Heron Cid
Bastidores

2018, o ano em que a mentira predominou. Por Pedro Doria

28 de dezembro de 2018 às 10h30 Por Heron Cid

Tudo fica muito difícil quando o diagnóstico está errado. E, na bagunça que foi este ano de 2018, entre algoritmos, redes sociais, polarização e notícias falsas, vivemos em essência um problema de diagnóstico errado.

Este foi o ano em que a mentira predominou. Não foi só de um lado.

O estado de confusão política no qual nos metemos começa antes das mentiras – começa numa sensação de inimizade que vem da polarização. Polarização falsa, pois não corresponde à batalha de ideias que corre na sociedade. Não há uma disputa ideológica entre esquerda e direita. Ou, ao menos, não só.

A classificação que divide o conjunto de ideias entre esquerda e direita vem de como se sentavam os parlamentares na Convenção Nacional francesa de 1792. É útil, por vezes. Hoje, atrapalha. Porque a disputa em curso se dá não entre dois, mas três grupos. E ao não classificar um destes três, tudo se confunde, tudo se mistura, e da falta de clareza nasce a mentira.

Está em ascensão uma direita conservadora de corte nacionalista. Ela toma emprestado um discurso econômico liberal, mas na verdade desconfia do liberalismo. Não acredita nos mercados livres entre nações, combate iniciativas multilaterais. Se define ‘antiglobalista’. Tampouco acredita na liberdade do indivíduo de tomar decisões a respeito de seu corpo ou vida. É, em essência, antiliberal.

Como é antiliberal a esquerda que ainda enxerga o mundo por lentes criadas nos anos 1930 para resolver problemas de outra crise. Ainda foca na indústria de coisas como se a riqueza, hoje, não fosse conhecimento na forma de software e serviços. Como se a internet não houvesse alterado a estrutura do trabalho, tornando obrigatório que se repense do zero todas as regras.

Conservador, na acepção pura da palavra, no sentido de que pretende manter as coisas como eram, são ambos. E ambos se opõem àquele conjunto de ideias que Bill Clinton, Tony Blair e, por aqui, Fernando Henrique, encamparam, entre erros e acertos, nos anos 1990. À esquerda interessa chamar a direita de liberal. À direita interessa se autoproclamar liberal como rebranding. Mas se nem esquerda, nem direita, defendem o mercado global, quem é que o faz? E quem, afinal, está olhando para o mundo como ele é, com os desafios nada triviais que o digital nos impõe? Não é a guerra comercial de Donald Trump, tampouco a adoração de um pacote de leis da era industrial, que vão dar conta da realidade.

A dicotomia PT contra Bolsonaro faz parecer que ou se está com um, ou com outro, e torna ideologicamente inclassificável um imenso grupo de pessoas. Quando não temos uma palavra para chamar uma coisa, é como se ela não existisse. O roubo do termo liberal pela direita, que muito interessa à esquerda, cala uma voz e implanta confusão. Ninguém se entende, porque diferenças não são percebidas. E quando alguém faz um discurso mais claro, afastando-se de ambos os grupos, logo alguém saca: ‘isentão’. Isento, não. Diferente. Muito diferente. O sequestro da palavra faz com que grupos que não concordam em quase nada pareçam estar próximos. E desta imensa bagunça, no qual o nome das ideologias é propositalmente confundido, nasce o caldo de cultura em que fake news podem se proliferar.

Temos um problema de má classificação. Há três conjuntos de ideias disputando espaço, os três incompatíveis entre si. A polarização está confundindo o debate, e num debate político confuso nunca se sabe com precisão o que é que cada um pensa. Quando as ideias não são claras, qualquer notícia falsa tem a chance de colar. Democracia, aquele regime cujo sobrenome é ‘liberal’, só funciona quando o debate é claro. E é da confusão de diagnósticos que nascem soluções irreais, aquele atalho para o autoritarismo.

O Globo

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