As instituições brasileiras têm escolhido errar sistematicamente, como se quisessem testar os limites do país em diversas áreas. Depois de usar o auxílio-moradia como moeda de troca para ter um aumento em época de crise, o Judiciário aprovou ontem o novo auxílio-moradia. O governo Bolsonaro nomeou um ruralista para cuidar de índios, quilombolas, licenciamento ambiental e reforma agrária, para três horas depois recuar, mas deixar ameaças no ar. O Congresso tem usado as últimas sessões do ano para aprovar medidas que ampliam os gastos públicos e limitam o espaço da administração que nem começou.
Um juiz enviado temporariamente para uma comarca na qual ele não mora, pode ter auxílio-moradia, claro. Mas são casos específicos e poucos. A ideia que vigorou nos últimos anos, de que todos os juízes tinham direito a que o estado lhes pagasse a moradia, porque não receberam reajustes, é espantosa. O Brasil está em crise, teve dois anos consecutivos de queda do PIB. Está saindo dolorosamente da recessão que encolheu a receita e devastou o mercado de trabalho. Há 12 milhões de brasileiros neste momento procurando emprego e sem encontrar, e outros cinco milhões desalentados. Os que têm estabilidade, os servidores públicos, pressionam o Congresso e conseguem reajustes. O Judiciário que está na elite do funcionalismo aprovou para si mesmo o aumento de 16,38%, e não se deu por satisfeito.
A cassação da liminar do ministro Luiz Fux, por ele mesmo, e o aumento do Judiciário foram apresentados como se um anulasse o custo do outro. É um engano. O aumento impacta a despesa de pessoal e foi concedido também aos inativos. Um mês depois volta agora o auxílio-moradia. Eles avisam que é com restrições. Mas é só uma questão de tempo para as interpretações se alargarem. E já há outro movimento em marcha, o de compensação pelo fato de que quando era auxílio não se pagava imposto de renda sobre esse valor. Sendo salário, há incidência do IR.
A preparação do governo Bolsonaro não poderia ser mais tumultuada. Diariamente lança-se uma ideia, como se o Brasil fosse um campo de teste. Foi isso que aconteceu com a defesa da pena de morte feita pelo deputado Eduardo Bolsonaro, desmentida horas depois pelo pai. Tem sido feito sistematicamente. O presidente eleito lança afirmações como fez esta semana sobre a reserva Raposa Serra do Sol sem explicar como, de que maneira e com que instrumentos legais pretende reverter uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal. Só consegue criar intranquilidade.
Pior do que as afirmações sem substância têm sido as decisões sem sentido. A escolha do ruralista Luiz Nabhan Garcia para cuidar da identificação e demarcações de terras indígenas, do licenciamento ambiental, das terras quilombolas e da reforma agrária foi uma ideia tão ruim que bateu o recorde: sobreviveu a apenas três horas. Foi desmentida pelo próprio Ministério da Agricultura que a havia divulgado. Mas ficaram dúvidas no ar. Afinal, para onde vão as áreas responsáveis pela política indigenista? Depois de vagar entre vários ministérios na Esplanada, a Funai foi destinada ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Mas ontem foi o Ministério da Agricultura que soltou nota anunciando e, depois, desanunciando o ruralista Nabhan Garcia como o responsável pelas questões indígenas e quilombolas e de licenciamento ambiental. Há um conflito de interesses insanável em nomear ruralistas para cuidar da questão fundiária brasileira. Há também um risco enorme de entregar o assunto indígena a uma pessoa, no caso a ministra Damares Alves, que tem a convicção de que a religião deve governar o país.
No Congresso em fim da legislatura, com tanta renovação, é um absurdo a aprovação de pautas-bombas que vão recair sobre o próximo governo. E foram muitos os projetos ruins que avançaram nos últimos dias. O Congresso aprovou uma medida permitindo que municípios excedam o limite de gastos com pessoal, renovou os incentivos fiscais do Norte e Nordeste e incluiu o Centro-Oeste, fez novas concessões nas dívidas rurais. E há outras bombas engatilhadas. O país está entrando no sexto ano de déficit primário e com a dívida pública em nível alto.
Nos três poderes são tomadas decisões que desconhecem a crise econômica, os conflitos de interesse e os riscos que o país corre.
O Globo