Na véspera de a tempestade bíblica de denúncias de abuso desabar sobre João de Deus e seus fiéis, Abadiânia (GO) e sua gente, eu participava com Claudia Moraes, major da PM-RJ, de debate em torno do livro “Falsa acusação”, recém-lançado em português pela Leya. Claudia é uma das responsáveis pelo Dossiê Mulher, relatório publicado desde 2005 pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) com estatísticas e análises da violência de gênero no Rio de Janeiro; no ano passado, 4.173 mulheres registraram crime de estupro no estado. Já o livro resume o ambiente pouco acolhedor das investigações de agressões sexuais que põem em dúvida depoimentos de mulheres nos EUA. Estereótipos sobre comportamento feminino, despreparo de profissionais de segurança e saúde, falta de empatia — machismo, enfim — explicam.
T. Christian Miller e Ken Armstrong, os autores, ganharam o Pulitzer, principal prêmio do jornalismo americano, com a reportagem que deu origem ao livro. Eles esquadrinharam as investigações que levaram à captura e ao julgamento de Marc O’Leary, estuprador em série de várias mulheres, condenado a 327 anos e meio de prisão em 2011. Na apuração, perceberam como as instituições policiais e judiciais lidam mal com a violência de gênero. E enxergaram a diferença que protocolo adequado e profissional empenhado podem fazer no resultado de um inquérito. Não por acaso, duas policiais foram essenciais para tirar da personagem central a tonelada de desconfiança que a fez vítima em dobro — como se o estupro não fosse suficientemente doloroso e traumático.
Nos EUA como no Brasil, mulheres que sofreram violência sexual, corpo e alma massacrados pela brutalidade, ficam expostas à dúvida, ao constrangimento, à desqualificação, a mais desgaste físico e emocional quando resolvem denunciar os agressores. Muitas desistem. Medo e desesperança estão por trás da subnotificação histórica desses crimes. Aqui, projeções otimistas dão conta de que apenas 30% dos estupros chegam à polícia — em 2017, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, houve 60.018 registros em todo o país. Se sete em cada dez vítimas silenciam, perto de 140 mil brasileiras deixam de levar abusadores à Justiça. O número pode ser ainda maior, posto que no próprio Fórum Brasileiro de Segurança Pública há pesquisadores certos de que 90% dos casos não são denunciados. Seriam mais de meio milhão de ocorrências não investigadas por ano.
Por décadas, mulheres vítimas de abuso sexual se calaram por sequer saberem-se vítimas. Ou como denunciar. O arcabouço legal construído no país — da Lei Maria da Penha (2006) ao texto que transformou em estupro qualquer ato destinado ao prazer sexual sob ameaça, violência ou não consentido (2009) — tem ajudado na apuração e no julgamento dos casos; as informações maciças sobre direitos, também. Mas as denúncias também dependem fortemente de um ambiente que dê segurança às vítimas: do apoio da família ao atendimento em delegacias e hospitais e à empatia de investigadores e equipes de saúde. A situação é mais grave quando os crimes envolvem crianças e adolescentes. No Dossiê da Mulher RJ, duas em cada três vítimas eram menores de idade; 68% dos casos de estupro aconteceram em residências; quatro em cada dez autores eram pessoas próximas, como companheiros ou ex, pais, padrastos, parentes ou conhecidos.
É particularmente duro levar adiante uma acusação de abuso quando o agressor é figura de projeção social ou comunitária, caso do ex-médico Roger Abdelmassih, do megaprodutor de Hollywood Harvey Weinstein, dos padres e bispos pedófilos da Igreja Católica e, agora, do médium João de Deus. As vítimas, muitas delas ameaçadas durante os atos de violência, sentem-se minúsculas, indefesas diante dos poderosos. “Há um padrão nesse tipo de caso. Mulheres não denunciam por medo, pelas relações de poder. Tomam coragem quando o primeiro caso se torna público”, confirma a promotora Gabriela Manssur, do Ministério Público de São Paulo. Ela participa da força-tarefa que, até ontem, tinha ouvido 12 mulheres que acusam João de Deus. Há outros 12 depoimentos marcados e mais 40 pedidos de agendamento. Ao todo, duas centenas de mulheres se dizem dispostas a denunciar por abuso sexual o homem em que buscavam a cura de doenças e o amparo espiritual. Elas têm de ser ouvidas.
O Globo