Entrei na redação do Globo pela primeira vez em 1968, e no dia 13 de dezembro era um estagiário indignado com a decretação do AI-5, e assustado com o futuro do país. Tinha 19 anos, era o mais novo da redação, que ouviu em silêncio aquele ato que ficaria conhecido como “o golpe dentro do golpe”.
Em 13 de outubro de 1978, quando foi promulgada a emenda constitucional nº 11, cujo artigo 3º revogava todos os atos institucionais e complementares que fossem contrários à Constituição Federal, “ressalvados os efeitos dos atos praticados com bases neles, os quais estão excluídos de apreciação judicial”, eu chefiava a sucursal de Brasília.
A emenda constitucional entrou em vigor no dia primeiro de janeiro de 1979, restabelecendo o habeas corpus e dando fim ao Ato Institucional nº 5, (AI-5). Acompanhei, portanto, nossa história recente, às vezes de muito perto, como quando era repórter credenciado no Palácio do Planalto acompanhando o governo Geisel.
Concordo com o Ascanio quando diz que a data a ser comemorada é a do fim do AI-5, mas nunca é demais lembrar o que aconteceu, para não repetir os mesmos erros. Outro fato a ficar marcado, na historia do país e na do Globo, foi a decretação da anistia, em 1979.
Quando comemorou 90 anos, em 2015, o Globo publicou relatos sobre os bastidores de suas grandes reportagens, entre elas a publicação antecipada da lei de anistia. Os dias que antecederam sua decretação foram agitados em Brasília, que já vivia um clima cada vez maior de abertura política iniciada no Governo Geisel.
O então ministro da Justiça, Petronio Portella, um dos principais articuladores no campo civil da anistia, reunia em seu gabinete diversos líderes políticos, de todas as tendências, para negociar, e depois exibir, vitorioso, o texto final. O ambiente naqueles dias era de festa e não havia rigidez no controle da circulação de jornalistas pelo gabinete ministerial.
Foi assim que, na véspera da divulgação oficial, dois repórteres da sucursal de Brasília que eu chefiava (Etevaldo Dias e Orlando Brito), aproveitando-se de uma distração de Petronio, que se levantara para se despedir de alguém deixando o documento em cima do sofá, roubaram o texto original. Quando Petronio deu por falta, mandou fechar a porta do gabinete e revistar os jornalistas.
Como havia muitos políticos na sala, e outras autoridades, os jornalistas exigiram: ou todos seriam revistados, ou ninguém. Estávamos, afinal, numa abertura politica rumo à redemocratização, e os jornalistas já podiam exigir algumas coisas. Dado o impasse, todos foram liberados, e a Polícia Federal pôs-se no encalço dos ladrões.
No primeiro contato telefônico com Etevaldo, infindáveis minutos depois da noticia, tive a certeza de que ele estava com o texto. Como a Polícia Federal já montara um esquema especial, e os telefones das redações estavam grampeados, montamos nosso esquema para burlar a vigilância.
Alugamos um apartamento no Hotel Nacional, e transmitimos para a sede no Rio o texto original. Não havia celular, nem computador, nem Facebook, e Brito improvisou: fotografou página por página e as transmitiu pela máquina de telefoto, que também não existe mais.
Por orientação expressa de Roberto Marinho, que acompanhou toda a operação informado por Evandro Carlos de Andrade, o diretor de redação, telefonei de madrugada para Petrônio para lhe dizer que o jornal recebera um envelope com o texto do decreto e o estava publicando na primeira página daquele dia.
Embora irritadíssimo com a desculpa esfarrapada, o ministro da Justiça teve que engoli-la, e o Globo circulou naquele dia com um de seus grandes furos jornalísticos tomando toda a primeira página.
O leitor estará se perguntando se é ético um jornalista roubar documentos de ministros. Mas é preciso lembrar o ambiente que vivíamos: uma ditadura nos seus extertores, mas ainda poderosa, com presos políticos em suas cadeias, e uma discussão que angustiava o país e muito mais de perto as famílias daqueles presos.
Nessas circunstâncias, antecipar o texto, tornando-o praticamente um fato consumado, pondo-o talvez a salvo de retrocessos de última hora, foi um serviço à democracia.
O Globo