Há quem acredite em médiuns. Houve quem acreditasse em João de Deus. Há quem acredite em salvadores da pátria. E houve quem acreditasse em mitos. Enganar crédulos é tarefa aparentemente fácil, sobretudo quando para estes resta pouca ou nenhuma esperança. Seja qual for a dor, do corpo ou do espírito, haverá sempre quem se apresente com a fórmula mágica para curá-la. Foi assim que o canastrão de Abadiânia enganou milhares de pessoas por 40 anos, oferecendo soluções “milagrosas” para doenças que a medicina e a ciência não conseguem curar. Em troca de apalpadelas aqui e ali.
João de Deus construiu uma reputação de tal maneira sólida que mesmo os que ouviam insistentes rumores de que ele abusava de pacientes preferiram não acreditar. Por isso, também centenas de vítimas do médium sentiam-se pouco à vontade para denunciá-lo. O caso dele se assemelha ao do czar da fertilização, o médico Roger Abdelmassih, condenado a 181 anos de cadeia pelo estupro de algumas dezenas de pacientes. Famoso, respeitado como o João de Abadiânia, o Roger de São Paulo só foi desmascarado quando a primeira paciente veio a público denunciá-lo. Depois, encorajadas, surgiram dezenas.
No plano político ocorreu o mesmo com o ex-presidente Fernando Collor, que encantou o Brasil anunciando que limparia o país de funcionários públicos com supersalários. Depois, aproveitando-se da péssima fama do então presidente José Sarney, jurou que higienizaria o país da corrupção e que mandaria prender todos os políticos corruptos. Foi assim que consolidou a imagem de que era mesmo o homem fadado a levar o Brasil para o lugar de glória a ele reservado no panteão das nações. Foi o primeiro presidente a ser afastado por corrupção.
Arrisco a dizer que nem mesmo o primeiro grande mito da Nova República, o presidente Tancredo Neves, que morreu antes de tomar posse, teria condições políticas de cumprir as promessas feitas na condição de primeiro presidente civil depois da ditadura. “Vim para promover mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais”, prometeu ele no discurso da vitória no Colégio Eleitoral, de 1985. Sarney, que herdou o seu mandato, conseguiu, com o apoio de uma Constituinte soberana, cumprir apenas a mudança política.
O que temos hoje, a duas semanas da posse do presidente Jair Bolsonaro, é um país que novamente acredita ter encontrado o homem que vai limpá-lo de um passado repleto de políticos de velhas práticas, de corruptos, do jeito petista e emedebista de governar, roubar e prestar favores. O Brasil pariu um novo mito. Mais da metade dos eleitores votou em Bolsonaro com a esperança de que ele cumpra o papel que pregou na campanha, que governe com pessoas honestas e que exerça o seu mandato de maneira ilibada e transparente.
O problema é a desilusão que ele pode causar. Pessoas que geram grandes expectativas, como foi o caso de João de Deus, Abdelmassih e Collor, causam grande decepção em seus seguidores fiéis quando caem trançados em suas próprias pernas, atrapalhados em seus malfeitos. Bolsonaro corre enorme risco de desiludir os brasileiros. Antes de tomar posse, já se viu enredado na questão dos repasses do assessor de seu filho Flávio Bolsonaro com dinheiro coletado de outros funcionários do gabinete. Se fosse só o filho, já seria grave, mas parte desse dinheiro foi parar na conta da sua mulher, o que é gravíssimo.
Há pouca coisa mais velha na velha política que Bolsonaro jurou combater do que desviar recursos de funcionários de gabinete parlamentar. Parece que foi isso o que Flávio Bolsonaro fez usando como repassador o policial militar Fabrício de Queiroz, que contratou como motorista mas que remunerava como assessor. A prática funciona assim: um servidor designado pelo parlamentar cobra parte do salário dos demais servidores e repassa os recursos arrecadados para o chefe. Uma prática ilegal e imoral empregada em larga escala no Congresso e nas Assembleias, principalmente pelos parlamentares do baixo clero.
Fim das trevas
A data a ser comemorada é o 13 de outubro. Foi nesse dia, em 1978, que o presidente Ernesto Geisel promulgou a emenda constitucional nº 11, que revogou o AI-5 e todos os demais atos contrários à Constituição.
O Globo