O título taxativo deste artigo dá sequência ao raciocínio que venho desenvolvendo neste Globo desde 2015, seja na parte impressa, seja no meu blog também abrigado na versão eletrônica. Em vários artigos chamei atenção para o esgarçamento do tecido institucional patrocinado pelos sucessivos escândalos de corrupção, pelo divórcio entre representados e representantes a partir de 2013 e pelo desastre econômico e social do governo Dilma. Não raras vezes alertei para a possibilidade de um outsider ser eleito em 2018, apenas meu radar custou a dar crédito ao capitão Bolsonaro que, embora eleito legitimamente, encerra um ciclo iniciado em 1974.
Uma vez eleito presidente, Geisel anuncia uma “abertura lenta, gradual e segura”. Muito desse projeto passou pela arena eleitoral, sendo menos saliente a guerra interna de Geisel contra a linha dura.
Em 1964 o membro da “Sorbonne”, Castello Branco assume a presidência com a intenção de “colocar a casa em ordem” e devolver o governo para um civil dois anos depois. O clima de agitação política fez proliferar uma série de grupos esquerdistas que, embalados pela Guerra Fria e pela Revolução Cubana acreditavam ser possível tomar o poder com espingardas e revolveres e, consequentemente, deram elementos para que a linha dura perpetrasse medidas repressivas sob o pretexto de combater o comunismo. Esta radicalização gerou atrito entre Castello e seu ministro do Exército Costa e Silva. Ao mesmo tempo que Castello tentava conter a tigrada no porão, a edição dos AI procurava limitar o quadro institucional, no que tange a medidas autoritárias, para seu sucessor, que, assim como Médici, visava a eliminação do perigo subversivo.
Exterminados os focos de luta armada e percebendo a perda de legitimidade do regime, Geisel e Golbery traçam as linhas centrais da transição que, além da distensão eleitoral, travava uma luta interna contra a linha dura. Ainda que documentos recentes da CIA revelem a anuência de Geisel quanto ao extermínio, o fato é que as mortes de Herzog e Fiel Filho foram tentativas de sabotagem da abertura, que só foram refreadas com a demissão de Ednardo Davila Melo e Sílvio Frota, em 77 bem como a escolha de Figueiredo para seu sucessor. Figueiredo conduziu a transição mas não sem incidentes. Os atentados à bomba dos anos 1980, praticados pelo grupo ao qual nosso capitão nutre simpatias, significavam a resistência a volta para os quarteis e a falta de pulso de Figueiredo.
Não obstante, dissidentes do governo e membros da oposição formaram uma aliança em torno de Tancredo Neves tendo em Leônidas Pires o principal fiador junto às forças armadas. Os ideais da Nova República abrigavam uma Assembleia Constituinte encarregada de estabelecer as regras para a disputa política e as diretrizes para um Estado de bem estar social. Esse arranjo resistiu a dois impeachments, ao controle da hiperinflação, ao retorno das forças armadas aos quarteis, a experiência de governos esquerdistas, mas sucumbiu à corrupção sistêmica somada a uma grave crise econômica e social e a uma batalha pela “hegemonia” no campo da cultura e do comportamento.
Mesmo que Bolsonaro seja o mais fiel dos defensores da Constituição, sua chegada ao poder de forma legítima, representa a ruptura com aquilo que Geisel começou a construir em 1974, e que tinha como pré-requisito o controle da tigrada que, segundo Gaspari “na anarquia ronca, confrontada recua”. A anarquia do governo Temer abriu espaço para o reingresso das Forças Armadas na política. A campanha de Bolsonaro trouxe o ronco da tigrada que ele mesmo diz não controlar. Precisaremos da rearticulação de um centro democrático para conter o que virá.
O Globo