A votação simbólica com que o Senado retirou da pauta o projeto que suavizava a Lei da Ficha Limpa é simbólica também do poder que os cidadãos têm de barrar iniciativas que façam retroceder os avanços que já alcançamos no combate à corrupção, exercendo sua cidadania.
O próprio autor da proposta, senador tucano Dalírio Beber, pediu que a votação não ocorresse. Não fez isso pressionado por sua consciência, nem por uma ação de seu partido, o PSDB, que mais uma vez se omitiu. Foi pressionado, isso sim, por centenas de mensagens de eleitores, e pela repercussão negativa que sua iniciativa teve na opinião pública.
O Congresso que se despede já tentara diversas vezes amenizar as punições aos deputados e senadores apanhados em crime de Caixa 2, e sempre teve que recuar. O projeto foi arquivado definitivamente, e espera-se que o renovado Congresso que toma posse em fevereiro demonstre na prática que, se não se renovou muito nominalmente, tenha se renovado em práticas políticas.
Além do repúdio da opinião pública à corrupção disseminada, uma das razões para a exitosa campanha eleitoral de Bolsonaro, há um fato concreto pela frente dos que ainda não entenderam que o país está em mudança: o juiz Sérgio Moro assume em janeiro o ministério da Justiça ampliado, com a prioridade de combater a corrupção e a lavagem de dinheiro.
Para combater o crime organizado, o dos traficantes e, também, o dos colarinhos brancos, aí incluídos os políticos. Uma das principais armas do combate à corrupção na vida política é a lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, que vem prestando um grande benefício à renovação política, não deixando se candidatar por oito anos políticos condenados em segunda instância. Como antes de 2010, quando a lei foi aprovada, a inelegibilidade valia por apenas três anos, houve a primeira tentativa de relativizá-la.
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a Lei da Ficha Limpa deve ser aplicada retroativamente. O projeto ora abandonado modificava esse entendimento do Supremo, permitindo, por exemplo, que políticos tornados inelegíveis antes de 2010 pudessem disputar as próximas eleições municipais.
Essa foi apenas uma das diversas tentativas de anistiar excelências que a lei alcançara, iniciando uma limpa que as urnas de 2018 confirmaram. Entre elas, um projeto de lei que criminalizava o Caixa 2 em campanhas eleitorais mas, na verdade, dava uma espécie de anistia aos parlamentares e ex-parlamentares que tivessem sido financiados através desse mecanismo anteriormente à aprovação da lei.
A manobra, que tinha o apoio das lideranças dos principais partidos do Congresso – PMDB, PT, PSDB – com exceção da Rede e do PSOL, foi abortada por uma obstrução do deputado Miro Teixeira, da Rede. Como outras semelhantes, ela seria inócua, pois o Caixa 2 já é considerado crime em diversas leis, eleitorais ou de crimes financeiros, e o STF já se pronunciou a respeito.
De lá para cá, a vida ficou mais difícil para os que foram apanhados na malha fina da legislação, e até mesmo o indulto de Natal para corruptos foi barrado pelo STF. Esse último episódio do Congresso que se despede, com muitos que foram despedidos pelos eleitores, mostra apenas a força da opinião pública cada vez maior, facilitada pelos novos meios de comunicação, capazes de espalhar em poucos minutos o repúdio dos eleitores a uma iniciativa que vise retroceder no combate à corrupção.
O governo Bolsonaro, que usa muito bem esses novos meios, terá um instrumento de contato com a sociedade para ajudá-lo no convencimento da opinião pública para a aprovação de temas polêmicos, como a reforma da Previdência. Mas não pode cair na tentação de dar “uma prensa” no Congresso, incentivando seus militantes a usarem as redes sociais para forçar uma aprovação de temas polêmicos.
Os eleitores farão isso naturalmente, se for o caso, mas não os robôs ou avatares guiados pelo Palácio do Planalto.
O Globo