Enfim, Bolsonaro anunciou o novo ministro das Relações Exteriores. Havia gente reclamando. As falas do governo eleito provocaram atritos para quase todo lado: países árabes, China, Cuba, Noruega e Holanda. A esperança é que um novo chanceler unifique o discurso e o cubra de um verniz diplomático para atenuar os choques.
Mas as ideias do novo chanceler, Ernesto Araújo, acabaram deslocando a inquietação para outro nível. Não as conhecemos no conjunto, apenas fragmentos de artigos teóricos e posts em sua rede social. Ele acha que Trump pode conduzir a salvação de um Ocidente apático, a partir da tradição cultural, principalmente a ânsia por Deus. Como ele, é cético em relação ao aquecimento global. Certamente, será combatido pela sua fé e sua descrença política em fatos em que a maioria dos cientistas acredita.
Isso não me surpreende tanto. Na verdade, a política, num século em que a religião regrediu, procura de todas as formas substituí-la no imaginário popular. Em muitas ocasiões, mencionei o caráter religioso do marxismo, com sua visão de paraíso e seu script determinista da história. Ela nos garante a vitória final, como os cristãos creem na subida aos céus, apesar da sucessão de derrotas cotidianas.
Além das notas sobre o marxismo, tenho mencionado a crítica de John Gray à nova direita inglesa, baseada também na denúncia dos elementos religiosos do Iluminismo, da expectativa de ocupar o mundo com o livre comércio e a democracia liberal.
Numa idade de fé minguante, tanto marxismo quanto liberalismo investem esperanças transcendentais no seu projeto de mudar o mundo. A julgar pelos fragmentos do texto do chanceler Ernesto Araújo, sua concepção é diretamente religiosa. As esperanças transcendentais não se se escondem nem se disfarçam como nas teorias modernas. Elas não substituem uma visão religiosa: são a própria visão religiosa.
Como todo idealismo, você pode discuti-lo por dentro, questionar sua lógica. O melhor, no entanto, é partir do mundo real, onde a política é uma humilde tentativa de acomodação mútua na busca de um modus vivendi. Tanto Bolsonaro quanto Hassan Rouhani, do Irã, têm de traduzir suas crenças em passos concretos e, neste momento, é que serão avaliados com mais rigor.
Tentei colocar a questão da política externa na campanha. Percebi que, em termos gerais, ela não interessava tanto ao público. Selecionei alguns temas: crise na Venezuela, relações com a China, Donald Trump.
Todos sabíamos que a vitória de Bolsonaro representaria uma aproximação maior com os EUA, o que, na minha opinião, é positivo. No entanto, uma coisa é aproximar-se dos EUA. Outra coisa é clonar alguns elementos da política externa americana, como se fôssemos eles. Daí minhas reservas à transferência da embaixada para Jerusalém, à tentativa de buscar um tom específico com a China e a um cuidado maior do que Trump com os acordos multilaterais.
Tudo isso vai ser discutido no seu tempo. Desde já, preocupa-me o embate entre o idealismo e a juventude do novo chanceler com os pragmáticos e calejados negociadores chineses. Kissinger os conhece bem e os retratou no seu livro sobre a China. Trabalham com a perspectiva de gerações, exercitam a paciência e a habilidade nos seus projetos de longo alcance.
Não creio que o melhor caminho seja discutir se Trump é a salvação do Ocidente, e sim analisar soluções práticas do cotidiano, como o rompimento com o Programa Mais Médicos, por exemplo. Bolsonaro expressou sua posição sobre os médicos cubanos durante a campanha. Como vencedor, tem legitimidade para colocar suas ideias em prática.
A única crítica possível, nesse caso, é sobre o timing do rompimento. O ideal teria sido preparar a retaguarda antes que o contrato fosse desfeito. Mas os cubanos sacaram mais rápido, para dramatizar a saída. Milhões de brasileiros ficarão, momentaneamente, desguarnecidos. São pobres, escapam ao radar da grande mídia, pouco influem nas redes sociais.
É difícil argumentar com princípios diante de um asmático em crise, uma forte intoxicação alimentar. Essa é a modulação da crítica ao marxismo, aos neoliberais e aos que atribuem a Deus o dinamismo da história. Todos são projetos políticos que esbarram na imperfeição humana, pouco sabem da tarefa modesta e cotidiana de sacrificar alguns bens para preservar outros.
Um ministro húngaro, após a queda do socialismo, dizia: antes eram uns fanáticos que diziam que o Estado resolve tudo; em seguida, vieram os que dizem que a salvação de tudo é o mercado. Nos Estados Unidos , e agora no Brasil, suprimem-se os intermediários: o assunto é direto com Deus.
O Globo