Na sessão solene do Congresso, ontem, as autoridades se revezaram batendo na mesma tecla: é preciso respeitar a Constituição. Alvo de todos os recados, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, disse que “na democracia só há um norte: o da nossa Constituição.” Se estavam todos de acordo em cumprir a Lei Magna promulgada em dia emocionante, há 30 anos, por que mesmo essa repetição? Porque esse é o maior teste que as instituições enfrentam.
O governo que se forma teve ontem dois momentos importantes e definidores. Pela manhã, cercado de representantes dos poderes, Bolsonaro ouviu que só há um caminho, o constitucional. De tarde, o futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, respondeu pacientemente a uma hora e meia de perguntas de jornalistas. Ele definiu o presidente eleito com adjetivos que normalmente não estiveram associados a ele: “ponderado”, “moderado” e “sensato”. Moro disse que não vê “risco à democracia e ao Estado de Direito”.
Bolsonaro deu baixa no Exército no mesmo ano, 1988, da promulgação da Constituição e começou sua bem-sucedida carreira política que o levou da vereança aos sucessivos mandatos como deputado e agora chega, pelo voto, ao cargo maior do Executivo. Saiu do Exército desgostoso com o soldo e o tratamento recebido ao se insurgir, mas com todas as convicções políticas que tinham à época as Forças Armadas, nas quais entrou como oficial formado pela AMAN no ano em que o então presidente Ernesto Geisel fechou o Congresso.
Ele se notabilizou não pelos projetos, não pela liderança, não pela capacidade de negociação política, mas pelas declarações polêmicas e agressivas, várias delas de desprezo pela democracia. Na campanha, algumas de suas falas arranharam partes da Lei Maior, como a que estabelece, no artigo 3º, que entre os objetivos da República estão a igualdade entre gêneros, a luta contra a discriminação. O presidente do STF, Dias Toffoli, foi votar, no dia 28, com a Constituição na mão e passou o dia lembrando o artigo 3º.
Ontem, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, foi mais enfática. “Não basta reverenciá-la, é preciso cumpri-la.” Bolsonaro não aplaudiu a procuradora que o denunciou por racismo. Antes de Raquel, Ela Wieko, quando ocupava o cargo de vice-procuradora-geral, já o denunciara por apologia ao estupro, ação que ainda permanece na mão do ministro Luiz Fux. Raquel Dodge, lembrou, não por acaso, que a Carta Magna prestigia as minorias, a erradicação da pobreza, a proteção ao meio ambiente. “A Constituição repudia toda a forma de discriminação.”
Por que os líderes do país têm insistido tanto em lembrar o documento que encerrou oficialmente, há três décadas, um período de arbítrio, suspensão de direitos e garantias individuais, supressão do direito de voto para os cargos executivos? Porque é aniversário da Carta na qual foi escrito o pacto que nos uniu e nos trouxe até aqui.
Há um momento na trilogia tebana de Sófocles em que Teseu, rei de Atenas, diz a Creonte, governante de Tebas: “Terei de estar atento a essas circunstâncias para evitar que considerem a minha pátria tão fraca a ponto de curvar-se a um homem só.” Será que é esse temor que faz com que tantos lembrem que o Brasil jamais pode se afastar do texto pactuado há 30 anos?
O juiz Sérgio Moro mostrou ontem a outra face do governo. Sereno, mesmo diante das perguntas mais difíceis, ele defendeu a decisão de ir para o governo Bolsonaro porque tem a ideia de que conseguirá consolidar os avanços institucionais conseguidos nos últimos anos de combate à corrupção. Tentará aprovar um primeiro pacote nos primeiros seis meses. Admitiu ter divergências em alguns pontos com o presidente eleito, mas afirmou que sabe que estará subordinado a ele.
— Existem receios, a meu ver infundados, e minha presença no governo pode ter o efeito de afastar esses receios. Sou um juiz, um homem de leis. Jamais admitiria qualquer solução que não fosse lei — disse Moro.
Moro pode ajudar a moderar o governo em que várias pessoas já demonstraram tendências autoritárias, até em fatos como a tentativa de impedir a imprensa ontem no plenário do Senado? Moro é apenas uma peça nesse complicado xadrez. Os poderes moderadores da República serão todas as instituições nas quais temos investido o melhor dos últimos 30 anos.
O Globo