Não é nenhuma novidade para os atentos de mente e espírito que as instâncias de intermediação vêm passando por um profundo processo de reconfiguração, com suas primeiras bolas de neve nos fazendo revisitar o ano de 2013, quando uma avalanche pegou de sola os partidos políticos, que precisaram (e ainda precisam) de bons solavancos para fazer a ficha cair. O mesmo pode ser dito sobre os sindicatos, escolas, igrejas, fundações e outras organizações.
Se tomarmos os partidos como um caso ilustrativo, poderíamos elencar algumas hipóteses para nos ajudar a entender esses processos de mudanças, entre as quais, escolho duas.
A primeira delas é a perda da capacidade de fazer a articulação entre o poder político – em sua lógica de manutenção e reprodução do poder – e os interesses e necessidades dos indivíduos.
A outra é o espetáculo como técnica política. Quando as imagens adquirem um significado profundo em nossas vidas e, ancoradas na dramatização e no sensacionalismo, colocam a política em uma perspectiva demasiado personalista e superficial, como uma cruzada entre bem e mal, em uma caçada aos culpados, para regozijo dos salvadores.
Mas, se até então o questionamento quanto à legitimidade da imprensa estava restrito a alguns círculos acadêmicos e grupos ativistas, agora ele se espraia para além do razoável, já que não está fundamentado em uma sistematização dos seus conteúdos, em uma verificação factual ou em uma confrontação de perspectivas de análise do mundo, mas tão somente na expressão do momento: fake news!
No mínimo desde a transição da ditadura civil-militar para a democracia, conseguimos demonstrar que a imprensa seleciona temas ou torna noticiáveis determinados fatos e atores em detrimento de outros, além de operar alguns enquadramentos ou interpretações das notícias.
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Essa é uma peleja importante para que possamos fundamentar nossas escolhas a partir de informações públicas diversificadas e qualificadas, tomando como pressuposto que a política está baseada em processos de comunicação.
Tá aí o X da questão! Aquele velho paradigma, onde poucos produtores de informação recebiam a atenção de muitos consumidores, ruiu com a chegada da internet, que permite, potencialmente, que todos possam ser, ao mesmo tempo, produtores e consumidores de conteúdo, em um modelo de comunicação híbrido.
Isso não quer dizer que a TV ou o rádio estão com os dias contados, mas que não são mais os únicos canais de difusão de informações socialmente relevantes.
O paradigma que se inaugura não tem mais aquele indivíduo que pode até ouvir um pouco de rádio durante o dia, em seus deslocamentos e no intervalo para o almoço, mas que não dispensa o telejornal noturno como o principal momento para se informar. Agora é a hora do indivíduo conectado.
Esse indivíduo pode consumir informações na imprensa tradicional, mas também nas redes sociais digitais, e ainda, pode pegar tudo ou parte daquilo, transformar em algo novo e compartilhar, gerando um ecossistema informativo que se retroalimenta de forma exponencial, caracterizando-se por ser distribuído e não centralizado.
Mas não é só de inovação e de pluralidade que vivemos. Ao declararmos a nossa independência em relação à imprensa tradicional, não sendo mais ela a única autoridade fiscalizatória dos agentes públicos aos olhos dos cidadãos e cidadãs comuns, e perdendo a exclusividade da produção noticiosa, abriu-se uma caixa de Pandora. É o que vemos na disputa eleitoral deste ano, quando uma nova gramática comunicativa se impõe, ao combinar uma militância orgânica com uma arrojada (nem por isso, legítima) tática de marketing político.
A eleição de Trump e o plebiscito do Brexit nos forneceram a experiência de que é possível usar vestígios digitais (ou seja, as páginas e postagens que eu leio, compartilho e comento nas redes) para criar conteúdos específicos para o meu próprio consumo.
Essa micro segmentação da propaganda política é altamente eficaz, pois aciona o que os comportamentalistas vêm chamando de viés de confirmação, um atalho cognitivo que faz com que as pessoas se engajem sobremaneira em situações e concepções que são mais condizentes com que já pensam, gostam e sentem. Isso, independente de ter ou não uma base factual, ou de estar ou não perdurando estereótipos, preconceitos ou sectarismos.
A tática se completa com a modelagem psicológica criada a partir da falsa percepção de que na informal esfera pública em que estou inserido “todos” falam e pensam como eu, o que gera um ciclo de feedback positivo: quanto mais eu interajo, mais me engajo e mais me sinto pertencente a essa comunidade. E a imprensa que não venha dizer que estou compartilhando fake news, sendo ela a própria encarnação da desinformação, segundo esses – para dizer o mínimo – entusiastas.
A perda de legitimidade da imprensa tradicional nos leva a um diagnóstico de terra arrasada, pois prenunciamos a destruição de um espaço de mediação que idealmente deveria permitir que fatos, vontades e preferências fossem apresentados, discutidos e racionalizados.
O espetáculo como técnica política está ganhando, especialmente porque o ordenamento simbólico da disputa tem como alicerce a eliminação de “inimigos” como solução para problemas complexos.
E agora, imprensa? A festa não acabou, a luz não apagou e o povo não sumiu…mas o que fazer diante desse cenário desafiador?
É preciso estabelecer um debate agonístico complexo, onde a divergência seja encarada a partir de bases democráticas.
Portanto, que a impressa retome seu lugar, de propiciar discussões republicanas, de possibilitar a modificação de consensos orientados pelo par igualdade e liberdade, de ser plural e diversa. Que deixe pra trás a linha editorial partidarizada que lhe foi característica por todos esses anos. Não apenas pela gestão da marca, mas pelo papel que tem como instituição.
Escrevo isso como um manifesto!