As memórias de José Dirceu, que estão chegando às livrarias, pararam em 2006, depois de sua saída da Casa Civil de Lula e da cassação do seu mandato. É um depoimento banal, mais preocupado com a discussão das facções petistas do que com o governo que pretendeu comandar. Aos 72 anos, cumpriu a promessa de que só falaria do seu tempo de militante da ALN e do Molipo quando completasse 80 anos. Poderia ter detalhado seu momento de esplendor, como chefe da Casa Civil de Lula entre 2003 e 2005. Sua memória ficou burocrática, cansativa.
Dirceu anunciou que publicará o próximo volume no ano que vem. Tomara que elabore uma curta frase deixada quase a esmo: “Lula e o petismo são a mesma coisa e não o mesmo destino”.
Dirceu fala em nome do petismo que ajudou a levar Lula ao poder. Aqui e ali o ex-ministro conta ursadas de seu chefe, mas, quando ele se juntou ao companheiro, sabia que era um urso que comia os donos. Foi comido. Ao contrário de Antonio Palocci, seu rival no governo e companheiro de cárcere, não mordeu o urso. Deixou seu silêncio no ar.
O comissário arrependeu-se de poucas coisas, sempre pontuais. Às vésperas da eleição de outubro, um trecho de seu livro enuncia uma questão capaz de assombrar quem gostaria de votar em Lula ou no seu poste:
“Aqueles que no nosso campo aceitam discutir a partir da cruzada anticorrupção, mas exigem Lula como alternativa para o PT e a esquerda em 2018, são hipócritas e se rebaixam, ao usar as armas do inimigo para um ajuste de contas interno ‘histórico’ contra os que ‘conciliaram com a burguesia e sua ideologia’.”
É uma formulação confusa. Pode-se dizer que há uma cruzada, mas não se pode negar a corrupção. Dirceu açoita seus adversários dentro do partido mas, na essência, segue a linha geral de denunciar as denúncias. Ao tempo do escândalo do “mensalão”, o comissário sonhava com o povo na rua defendendo-o e ao governo. Agora, explica as manifestações contra Dilma e sua deposição como consequência da desmobilização da militância, entregando as avenidas ao conservadorismo.
Dirceu e Lula acreditavam que as ruas seriam tomadas pelos seus defensores. Enganaram-se. O urso percebeu o engano e hoje, blindado pela cadeia, espera uma vitória eleitoral, atropelando o que seria a “cruzada anticorrupção”.
O militante sonhador dos anos 60, organizador do PT e capitão do time no primeiro governo de Lula, continua capturado pela brilhante conclusão de sua biografia, escrita pelo repórter Otávio Cabral: “José Dirceu de Oliveira e Silva jamais chegou a lugar nenhum”.
Percebe-se isso quando ele se refere com malícia e crueldade a Fernando Gabeira, um dos sequestradores do embaixador americano em 1969. Graças a essa aventura, Dirceu foi libertado e viveu em Cuba. Gabeira deixou o PT, condenando o poder imperial de Dirceu e dele mereceu um semiepitáfio:
“Acabou sua carreira política de forma apagada, fugindo de supostas irregularidades praticadas em seu mandato. Anos mais tarde, engajar-se-ia entusiasticamente nas conspirações golpistas.”
Gabeira deixou a política, voltou ao jornalismo e rala com sucesso percorrendo o Brasil para mostrar a vida de seu povo. Dirceu foi condenado a 11 anos de prisão e está em liberdade por decisão judicial.
No século passado o livro “O que é isso, companheiro?”, com as memórias lúdicas de Gabeira, foi a apologia de um sonho. José Dirceu trouxe as memórias do pesadelo.
O Globo