Dois tribunais constitucionais da América Latina já passaram a borracha em trechos da Constituição que rege seus respectivos países.
Em 2009, a Suprema Corte de Justiça da Nicarágua, a pedido de Daniel Ortega, declarou sem efeito o Artigo 147 da Carta, que vedava explicitamente a reeleição do presidente. Ortega havia assumido o mandato em 10 de janeiro de 2007 e reivindicava o direito de se eternizar no poder recorrendo a reeleições sucessivas. Os “magistrados sandinistas”, essa fabulosa contradição em termos, atenderam a seu pedido. O regime tortura opositores nos porões e os mata a tiros nas ruas, nas igrejas, nas casas. Em três meses de protestos, pelo menos 360 pessoas desarmadas foram assassinadas.
Em 2016, no Brasil, o STF mandou às favas o Inciso LVII do Artigo 5º da Constituição, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, e autorizou a execução da pena depois da condenação em segunda instância. E como explicar que cumpra pena aquele que “culpado” não pode “ser considerado”? Não há explicação. E só por isso um certo Luiz Inácio Lula da Silva está em cana. E notem que nem vou entrar no mérito da sentença, ancorada nesta nova corrente do pensamento jurídico surgida no Brasil: o “Direito Morisco”.
Cesare Beccaria foi encarcerado em Curitiba. Foi só uma das vezes em que o tribunal rasurou a Constituição. Em todas, aqui ou na Nicarágua, protestei com dureza. Em todas, o PT se calou.
Os “companheiros” tentaram, sem sucesso, provocar um movimento internacional de solidariedade a Lula. Com efeito, os magistrados que o mantêm preso substituem a letra explícita da Constituição por uma interpretação. Um país que envereda por esse caminho marca um encontro com a crise institucional. Cedo ou tarde. O destino de seu líder maior poderia ter ensinado alguma coisa aos petistas no terreno da ética e da moral. Mas quê… De certo modo, tornaram-se ainda mais pervertidos.
A democracia não é e nunca foi, para o PT, um valor inegociável. A sua adesão aos padrões da disputa democrática segue sendo puramente instrumental. Não se enganem: se os petistas voltarem ao poder, vão cometer os mesmos erros que os conduziram, e ao país, ao desastre. O que nos dá essa certeza?
O Foro de São Paulo, que congrega partidos de esquerda da América Latina, fundado por Fidel Castro e Lula —o presidiário ao arrepio da Constituição—, reuniu-se em Havana, Cuba, para debater a crise. Ninguém menos do que a ex-presidente Dilma Rousseff integrava a delegação do PT.
Mônica Valente, secretária de Relações Internacionais do partido e secretária-executiva do foro, expressou a opinião da entidade e da legenda, segundo informou esta Folha: “Depois de tantos sucessos, sofremos uma contraofensiva neoliberal, imperialista, multifacetada, com guerra econômica, mediática, golpes judiciais e parlamentares, como ocorre na Nicarágua e ocorreu na Venezuela”.
O partido de Lula, o prisioneiro do “Direito Morisco”, solidariza-se com os algozes da Nicarágua, que respondem com tiros ao protesto de pessoas desarmadas. O governo de Ortega não é apenas autoritário e violento. É também notavelmente corrupto, o que não constrange o PT, claro! José Mujica, ex-presidente do Uruguai e um dos líderes da esquerdista “Frente Ampla”, não hesitou em condenar o massacre. Até o PSOL, por aqui, repudiou a truculência. Mas não o petismo.
Quando presidente, Dilma se referiu, mais de uma vez, com justa indignação, à tortura de que foi vítima durante a ditadura. Mas, apontei então a falha moral, sem jamais fazer um mea-culpa por ter integrado grupos terroristas. Agora nós a vemos como a face de um partido que justifica a violência sob o pretexto de combater a “contraofensiva neoliberal”.
Lula pode até se aproveitar da defesa que faço do Estado democrático e de direito. Mas o Estado democrático e de direito não tem como se aproveitar da defesa que Lula e os petistas fazem de si mesmos. São movidos pelo vício, não pela virtude. Ou não tripudiariam sobre cadáveres.