O passado que não passa. Guilherme Boulos – Heron Cid
Bastidores

O passado que não passa. Guilherme Boulos

31 de maio de 2018 às 10h40 Por Heron Cid

Os familiares de mortos, desaparecidos e presos políticos são os grandes responsáveis pelos avanços na elucidação das graves violações de direitos humanos cometidos pela ditadura brasileira. Desde os primeiros casos de tortura, assassinato e sequestro cometidos pelo regime, há intensa luta não só pela verdade, mas também por memória, reparação e justiça.

O Estado brasileiro só reconheceu a sua responsabilidade sobre alguns desses casos em 1995, com a Lei nº 9.140, que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. De lá para cá, por meio da Comissão de Anistia (2002) e da Comissão Nacional da Verdade (2012), passou a promover reparações simbólicas e pecuniárias.

Embora importantes, as medidas foram limitadas. Na maioria dos casos, o governo federal nada mais fez do que corroborar descobertas feitas pelos próprios familiares.

O documento trazido a público recentemente, que comprova a autorização do ditador Geisel para que a política de execuções sumárias tivesse continuidade, volta a jogar luz sobre a questão. A informação oficial de que generais graduados do Exército e o próprio presidente tomaram conhecimento, ordenaram e monitoraram as execuções de opositores políticos comprovou o que muitas organizações de direitos humanos já sabiam.

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade apontava a existência de uma cadeia de comando das graves violações de direitos humanos que ia do ditador, passava pelos ministros, por comandantes de centros de informação, e chegava aos operadores da máquina de choque ou do pau de arara.

Ainda que não represente propriamente uma novidade, a divulgação do documento é fundamental para nos levar a refletir sobre o quanto ainda falta ser feito no que diz respeito aos direitos à memória, à verdade e à justiça. A lista da Comissão Nacional da Verdade atesta a existência de 434 vítimas da ditadura.

Os números oficiais indicam ainda dezenas de milhares de pessoas presas ilegalmente e torturadas. Pessoas a quem o País deve não só pedidos de desculpas, mas distintas formas de reparação e punição aos protagonistas dessas atrocidades.

Nesse sentido é fundamental a revisão da Lei da Anistia de 1979, seja por uma reinterpretação na Justiça, tal como o PSOL demanda em uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental junto ao STF, seja por uma revogação pelo Congresso Nacional.

Isso é importante, não por alguma vingança ou persecução a velhos senhores que já estão moribundos. Mas para o Estado e a sociedade brasileiros afirmarem categoricamente que tortura, execução sumária, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver são inaceitáveis, ainda mais se cometidos por agentes públicos.

Além disso, a divulgação do documento, após vencido o prazo de sigilo nos EUA, joga luz também sobre a questão dos arquivos das Forças Armadas. É difícil acreditar que, se existe um documento como esse nos arquivos americanos, todos do Brasil tenham sido destruídos.

Há documentos com graus elevados de sigilo, especialmente os do Centro de Informações do Exército, Centro de Informações da Aeronáutica e Centro de Informações da Marinha, que ainda não foram tornados públicos.

O argumento de que esses documentos foram destruídos com base na lei da época não é válido, pois a mesma lei recorrentemente citada pelos militares determinava que fosse lavrado Termo de Destruição quando documentos fossem destruídos. Onde estão esses termos, portanto?

É necessário lembrar ainda que foram encontradas diversas valas comuns no Brasil, como a de Perus em São Paulo, e que é fundamental a existência de investimento para que tais ossadas possam ser identificadas.

Tal tarefa é de competência da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, esvaziada pelo governo Temer. Desde o golpe, também foi desmantelada a Comissão de Anistia, tanto no trabalho da educação em direitos humanos quanto na tarefa de conceder reparação simbólica e econômica.

É preciso que as futuras gerações não só conheçam a história, mas que incorporem a defesa dos direitos humanos e da democracia em sua formação. Afirmar a verdade pode ser revolucionário. Neste caso, reafirmá-la é urgente. A violência não começou na ditadura civil-militar de 1964 a 1985, nem cessou nela. Amarildo, Marielle e tantos outros estão aí para provar.

Quando uma nação não acerta as contas com seu passado, ele segue assombrando o presente e comprometendo o futuro. Como se diz em psicanálise, é um passado que não passa. Não se trata de vingança, mas de estabelecer um marco simbólico na sociedade que rechace a violência estatal. Para que alguém que exalte Brilhante Ustra em pleno Congresso Nacional não tenha eco, mas o desprezo e repugnância que merece.

Em tempos de crise democrática, com assassinatos políticos como o de Marielle e prisão política como a de Lula, nada mais importante do que relembrar e rechaçar as saídas autoritárias.

Carta Capital

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