Duplo abandono. Por Guilherme Boulos – Heron Cid
Bastidores

Duplo abandono. Por Guilherme Boulos

16 de maio de 2018 às 09h49 Por Heron Cid

madrugada do Dia do Trabalhador deste ano registrou uma das piores tragédias urbanas na história recente brasileira. Um incêndioprovocou o desabamento de um edifício na região central da cidade de São Paulo e centenas de ocupantes do prédio, antes abandonado, perderam tudo que possuíam.

Ainda não foi confirmado o número total de mortos, mas, até a confecção desta coluna, dois corpos haviam sido encontrados de um total de no mínimo sete desaparecidos.

Em 1886, o 1º de Maio também havia sido um dia trágico para os trabalhadores. A história conta que ao menos quatro manifestantes foram mortos nesse dia em Chicago, depois de uma greve histórica com 340 mil operários nas ruas pela redução da jornada de trabalho nos EUA.

Da tragédia nasceu a data, o Dia Internacional dos Trabalhadores. Exatamente 132 anos depois, uma trágica coincidência.

Chamar, no entanto, o que aconteceu de tragédia não nos permite falar em surpresa. Em 2015, um relatório do Corpo de Bombeiros apontava uma série de irregularidades que podia deixar o prédio em chamas e dificultava qualquer atuação de urgência.

Independentemente da causa técnica do incêndio (aponta-se a possibilidade de um curto-circuito no interior de um dos apartamentos), precisamos ver a história de abandono que levou a uma maior vulnerabilidade.

Ocioso há décadas e entregue ao governo federal por causa de dívidas, o imóvel chegou a ser cedido ao município e devolvido à União. No dia do desastre, encontrava-se novamente “cedido temporariamente” à prefeitura paulistana.

Em tempos como este, chega a ser necessário afirmar o óbvio: quem estava no prédio na hora das chamas não tem culpa pelo ocorrido. Infelizmente, parte da mídia e dos ditos “especialistas” chegou à leviandade de afirmar o contrário.

Qualquer um que circula por ocupações de imóveis e terrenos abandonados sabe que quem foi ali viver não o fez por escolha, mas por uma profunda necessidade.

O que leva alguém a viver numa ocupação é a falta de alternativa, impulsionada pela ausência de políticas públicas de habitação. Uma ocupação é sempre resultado de um duplo abandono: de um imóvel e de gente.

Nosso País protagoniza um verdadeiro escândalo habitacional. Dados do IBGE apontam 6,3 milhões de famílias sem-teto  e 7,9 milhões de imóveis ociosos. De um lado, uma massa de afligidos pela moradia precária, vivendo de favor ou sofrendo com o valor dos aluguéis.

De outro, um mar de propriedades sem função social, violando a própria Constituição. Entre os dois, vemos um poder público omisso em fazer valer a lei que beneficiaria os mais pobres: garantir o direito à moradia para quem precisa e desapropriar terrenos e imóveis abandonados que só servem à especulação e à deterioração das cidades.

Além da ausência do poder público, esse drama é fruto do modelo urbano que impera nas grandes cidades do Brasil. Uma cidade cada vez mais cara, desigual e degradada. O índice de aluguéis medido pelo FipeZap em São Paulo mostra aumento de 96% na última década.

A mesma família que gastava 500 reais em 2008 pode estar gastando 980 reais alugando o mesmo imóvel. Caso não possa arcar com o valor, é obrigada a ir para um local mais distante e uma situação pior. Em muitos casos, precisa escolher entre pagar o aluguel ou botar comida na mesa.

Nesse contexto, é inevitável aparecer uma série de ocupações e de movimentos de luta por moradia nas metrópoles.

Trata-se uma tentativa de resistência, protagonizada por milhares de sem-teto, a uma lógica cruel de financeirização do espaço urbano, que faz da moradia quase um artigo de luxo. Uma verdadeira “guerra dos lugares”, no termo utilizado pela urbanista e professora Raquel Rolnik.

tragédia no Centro de São Paulo não pode apenas produzir comoção. Ainda que tardiamente, o poder público tem o dever de fornecer uma solução digna para as famílias afetadas. E atuar de maneira ágil na garantia da segurança e de uma resposta para as famílias que ocupam imóveis abandonados, antecipando futuros desastres.

E não se faz isso ameaçando de despejo as ocupações existentes, mas propondo novas alternativas. Poderíamos mencionar a locação social, política pública de aluguel subsidiado consagrada em várias capitais europeias, ou a moradia provisória, adotada em Nova York. Para o pensamento médio da elite brasileira essas inciativas são, porém, “bolivarianas”.

Ao contrário, algumas autoridades preferem tratar qualquer movimento de moradia como “facção criminosa”, o que é, além de hipócrita, profundamente sintomático da forma que os governantes veem quem decide lutar por um direito básico.

Generalizar práticas oportunistas isoladas como se fossem do conjunto do movimento social é tão inaceitável quanto essas próprias práticas. Quando o Estado se omite de seu dever constitucional e lida com a questão da moradia como caso de polícia, é ele que está cometendo um crime contra a população.

Carta Capital

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