O brutal assassinato da vereadora Marielle Franco está exacerbando a radicalização política, levando a que direita e esquerda, categorias políticas consideradas à beira da extinção que um mundo pós-moderno tensionado pelos fundamentalismos e preconceitos ressuscitou, mostrem suas faces perversas.
Historicamente vemos que essa divisão aqui no Rio tem levado governantes ligados à esquerda e à direita a tomarem atitudes, ou deixarem de tomá-las, em relação ao tráfico de drogas e às milícias de acordo com sua ideologia política, permitindo que a situação de descontrole chegasse ao ponto em que estamos.
De um lado, acusações nem sempre anônimas, como é o caso da DesembargadoraMarília Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, lançam sobre a vereadora assassinada insinuações de ligações com o tráfico de drogas e facções criminosas. O melhor exemplo desse estado de coisas é o silêncio do deputado federal Jair Bolsonaro, um dos favoritos na eleição para presidente da República.
Um assessor explicou que o que ele gostaria de dizer seria polêmico, então prefere silenciar por enquanto. Mas mandou um filho seu retirar do facebook uma mensagem de pêsames para a família da vítima. Para quem considera que “bandido bom é bandido morto”, é possível imaginar sem erro o que Bolsonaro gostaria de dizer. E é certo que ele aguarda a confirmação das teorias que ligam a vereadora Marielle a traficantes e facções criminosas para se pronunciar. Como se esse fato, se confirmado, justificasse a barbárie.
De outro, esquerdistas e anarquistas em geral apressam-se a atribuir à intervenção militar na segurança pública no Rio o assassinato da vereadora, tentando aproveitar-se do cadáver político para atingir objetivos que não vislumbram alcançar na ação política tradicional depois que o ex-presidente Lula ficou inviabilizado para a disputa presidencial por ter sido condenado em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro em um dos vários processos a que responde na Justiça.
Esses desvios políticos, que levam cada um dos lados a defender seus “bandidos preferidos”, a direita equivocadamente apoiando as forças policiais que se desviam da legalidade formando milícias ou bandos paramilitares, e a esquerda a tratar traficantes de drogas e armas como vítimas de uma sociedade desigual, e não como criminosos comuns que colocam em risco a maioria da sociedade, principalmente os mais desprotegidos, vêm sendo cevados há muitos anos pela cegueira ideológica.
Quando se transfere uma comunidade inteira para uma Vila Kennedy sem estrutura mínima, está-se semeando o império dos fora da lei que dominam o conjunto habitacional desde sempre. Quando se autorizam construções de alvenaria nas favelas sem um planejamento urbanístico mínimo, sem cuidados sanitários básicos, sem a presença dominante do Estado, está-se criando um ambiente propício ao crime organizado.
Quando se enxerga no nascedouro das milícias paramilitares uma solução para combater o crime organizado dos traficantes, está-se alimentando essa polarização criminosa que disputa o domínio territorial nas comunidades menos protegidas pela força do Estado, substituído pelos mesmos milicianos ou traficantes.
A pretexto de combater o tráfico faz-se vista grossa para os milicianos e policiais militares que se utilizam do crime para combater o crime, e substituí-lo por uma nova ordem tão perversa quanto a anterior. E os que trabalham em ações sociais nas favelas e comunidades carentes e aceitam passivamente as atrocidades que os traficantes e facções criminosas impõem aos moradores, sem denunciá-los com a mesmo veemência com que denunciam os desvios dos maus policiais, também contribuem para esse estado de coisas.
Passeatas contra o domínio dos traficantes e facções criminosas nas comunidades carentes inexistem. Mas passeatas contra a intervenção militar na segurança pública, ou contra governos, essas são estimulantes. Enquanto a questão da segurança nacional for tratada como uma simples disputa entre esquerda e direita políticas, com os dois lados cometendo o equívoco de apoiar bandos criminosos em disputa, o país não se livrará dessa situação perversa. Sem contar com o risco já verdadeiro de que candidatos ligados a milícias e ao tráfico ganhem assento no Congresso.
Incentivar a violência de rua e deslegitimar as instituições democráticas é estimular a insegurança, pois a desordem ajuda os grupos criminosos. Apoiar as Forças Armadas, sem deixar de monitorar suas ações através de mecanismos da sociedade civil, significa apoiar a defesa da democracia e dos direitos humanos, que são afrontados diariamente pelos traficantes, milicianos e policiais civis e militares desviados de suas funções, não pelo aparato de segurança institucional que existe para defender os cidadãos de bem.
O Globo