Raquel Dodge volta a demonstrar que é uma expressão do Partido da Polícia. Por Reinaldo Azevedo – Heron Cid
Bastidores

Raquel Dodge volta a demonstrar que é uma expressão do Partido da Polícia. Por Reinaldo Azevedo

14 de março de 2018 às 09h35 Por Heron Cid
Raquel Dodge, procuradora-geral da República

Uma das expressões mais felizes que já cravei foi “Partido da Polícia” para me referir a setores do Ministério Público, do Poder Judiciário e também da imprensa que resolveram fazer tabula rasa dos fundamentos legais e constitucionais em nome de uma ideia de moralidade que tem na cabeça. Bem, só na cabeça de um celerado, de um autoritário ou de um desavisado, o combate à corrupção justifica qualquer coisa. Gosto de lembrar, nessas horas, a fala de Bernardo Bertolucci numa antiga entrevista à revista BRAVO!: “O fascismo começa caçando tarados”. Obviamente, o cineasta não estava defendendo tarados, mas observando que o combate a tal desvio não pode fazer com que joguemos no lixo as demais garantais.

Muito bem! Por que essa introdução? Raquel Dodge tem sido até agora uma decepção para as pessoas razoáveis que esperavam que ela fosse conter o comportamento indecoroso e ilegal de alguns companheiros seus de Ministério Público. Ela não moveu uma palha nesse sentido. Muito pelo contrário: a doutora demonstra estar sendo manipulada por Rodrigo Janot, com a melíflua devoção do ex-procurador-geral à moralidade. E não emprego a palavra por acaso: o sujeito melífluo é aquele que revela uma doçura, ou um apego, afetado e hipócrita a alguma coisa. Afinal, fosse o antecessor de Dodge um fiel, se me permitem o jogo de palavras, procurador das leis, não teria perpetrado metade das barbaridades de que foi estrela.

Mas volto a Dodge. Em dezembro do ano passado, o ministro Gilmar Mendes concedeu uma liminar em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental que proíbe a condução coercitiva de pessoas para simples interrogatórios, como virou moda, por exemplo, na Lava Jato. A razão é muito simples. Ninguém é obrigado a comparecer a esse chamamento. A lei também não impõe a autoincriminação. E, antes que os idiotas comecem a berrar que assim é porque o Brasil é o país da impunidade, lembro que assim é no mundo inteiro.

Não é que a procuradora-geral resolveu se insurgir contra a liminar concedida pelo ministro? Inicialmente, pede a ele mesmo que a reconsidere. Caso não seja bem-sucedida, que ele, então, leve o caso para o pleno. Que se note, leitor, antes que você possa cometer juízos ligeiros. O próprio ministro destaca: “Para que não paire dúvida, desde logo esclareço que o emprego não especificado da expressão ‘condução coercitiva’ doravante neste voto fará referência ao objeto da ação – condução do imputado para interrogatório. Reitero que, na medida em que não há obrigação legal de comparecer ao interrogatório, não há possibilidade de forçar o comparecimento”.

Prossegue Mendes: “Há outras hipóteses de condução coercitiva que não são objeto desta ação – a condução de outras pessoas, como testemunhas, ou de investigados ou réus para atos diversos do interrogatório, como o reconhecimento, por exemplo. Essas outras hipóteses não estão em causa”.

Assim, que se note: a liminar do ministro diz respeito exclusivamente às conduções para simples interrogatório. Ora, como obrigar alguém, pela força, a comparecer a algo a que, aí por força de lei, não tem a obrigação de estar presente?

Em sua argumentação, Raquel chega a ser pedestre ao observar que a condução coercitiva seria uma medida menos gravosa e alternativa à prisão preventiva e à prisão provisória. É um espetáculo de sofisma: aquilo que virou um símbolo da truculência da MPF e da PF, exercida ao arrepio da lei, é visto pela procuradora como expressão da suavidade. Ademais, a doutora esquece que é preciso apontar motivos para a prisão, não é mesmo? E a simples colheita de depoimentos não está entre eles.

Dias infelizes estes que vivemos! Autoridades dizem qualquer coisa, sem compromisso com os fatos, com a lei ou com a lógica.

A doutora avança na agressão ao bom senso, notando que a condução coercitiva seria, “Inclusive, uma oportunidade de se apresentar (sic) esclarecimentos úteis à própria defesa e que possam, de imediato, excluir a possibilidade de participação do investigado no crime apurado.”

Ah, entendi: então se apela a uma ilegalidade para garantir a proteção daquele que é alvo do arbítrio.

Ademais, a doutora esqueceu de uma questão essencial: mesmo nos demais casos elencados pelo ministro, em que a condução coercitiva é possível e legal, é preciso que o convocado a comparecer a uma audiência resista ao chamamento ou que haja motivos razoáveis e palpáveis para supor que irá resistir à convocação.

Dodge tenta adocicar práticas de um estado policialesco, que nada tem a ver com o bom exercício do direito, da Polícia e da Justiça. Até porque seria a primeira vez na história em que alguém, contra a lei, seria arrastado pelo braço, por uma força policial, em sua própria proteção.

Raquel Dodge poderia estar brincando. E já seria péssimo. Mas ela não está. A doutora faz é uma genuflexão à categoria que votou nela, contra a Constituição, note-se, para procuradora-geral. E nós precisamos, nesse cargo, de alguém que se ajoelhe diante da Constituição.

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