Para uma elite como a nossa, inimiga do próprio povo, o único medo e pavor é de uma rebelião popular. Medo este ancestral em toda elite escravocrata, que é o medo da revolta dos escravos. E quando se trata da rapina rentista, os escravos são muitos, inclusive na classe média. No entanto, para que aconteça uma reação é necessário quebrar crenças afetivas profundas da população.
Inteligência é levar em conta, portanto, as consequências de qualquer ação. Essas consequências são sempre “morais”, ou seja, o elemento que permite “justificar” a ação pragmática permitindo sua continuidade no tempo.
O ataque do capital financeiro internacional e nacional para a rapina da sociedade brasileira assumiu a roupagem do conluio entre Rede Globo (no comando da mídia venal) e Lava Jato como instrumento de pressão do Legislativo e do Judiciário e de manipulação da sociedade.
O fato moral, subjacente a toda a trama, foi o sequestro da soberania popular da democracia representativa em favor de uma “soberania popular” direta, supostamente representada nas ruas pelas frações conservadoras da classe média, e “televisiva”, pela manipulação da Rede Globo e da grande mídia.
No curto prazo, o esquema funcionou maravilhosamente para seus operadores entre 2013 e 2016. Não só derrubou uma presidente eleita, mas, por meio de vazamentos seletivos e ilegais entre Lava Jato e mídia, fez o PSDB renascer das cinzas e dizimou o único grande partido das classes populares nas eleições de 2016.
O Supremo Tribunal, muitas vezes coagido e ameaçado, não só cedeu às pressões midiáticas como participou da empreitada. O dia D foi a gravação ilegal da conversa da presidenta em dezembro de 2015 que, na prática, pôs a Lava Jato acima do Supremo.
O tema da soberania popular como fundamento moral da obediência social concreta e cotidiana é o nó górdio da questão, embora poucos percebam a questão em toda sua amplitude. É comum que se imagine que o “povo” não saiba o que a soberania popular significa como palavra ou como ideia. É verdade. A grande maioria não tem compreensão “cognitiva” do que esta ideia significa e certamente não saberia defini-la se fosse perguntada.
Mas a dimensão decisiva nesta questão não é a cognitiva. Sua importância é emocional, afetiva, intuitiva, representando a ideia meramente sua articulação racional. E o que dá importância à ideia é o afeto, o sentimento que a ideia expressa e articula. Assim, a soberania popular é uma ideia “inarticulada”, mas presente afetivamente no coração e na mente das pessoas que é o aspecto decisivo.
Que a Lava Jato – que empobreceu o país e atrasou seu desenvolvimento civilizatório em todas as dimensões – perca legitimidade a cada dia que passa nos olhos da população, repõe a questão da soberania popular sequestrada em outro patamar hoje em dia.
Poucos compram, agora, a ideia de que o sequestro da soberania popular representativa aconteceu por boas razões. Embora a sociedade não tenha uma concepção “escolar” da soberania popular, todo o prestígio e todo “carisma” de todas as instituições democráticas e de personalidades investidas de autoridade institucional derivam da soberania popular.
O juiz Sérgio Moro foi alçado à figura carismática do movimento golpista, como campeão da luta pela moralidade na política para se contrapor à figura de Lula como campeão da luta contra a desigualdade e herói de uma soberania popular da maioria que havia alcançado representação.
Sua desconstrução inevitável, apesar da teimosa e desesperada proteção midiática, reduz o sequestro, glorificado poucos anos atrás, a um crime comum sem “carisma”.
A crescente perda de prestígio de todas as instituições da democracia representativa entre nós decorre deste sequestro de uma soberania popular que é o único fundamento real deste prestígio. O processo armado e sem provas e a perseguição política contra Lula dá uma nova chance ao Supremo Tribunal e a democracia representativa brasileira.
Como condenar Lula sem provas e deixar Aécio Neves e Michel Temer, com vozes gravadas e malas filmadas, sem castigo? Não é só a salvação da democracia representativa brasileira que está em jogo, mas a salvação do prestígio institucional do próprio Supremo Tribunal que está umbilicalmente ligado a ela. Poucas vezes a vida dá uma nova chance de refazer uma história. O Supremo ganhou uma nova chance.
Esperemos que os juízes e juízas percebam seu interesse próprio e possam “compreendê-lo bem”, como diria Tocqueville, percebendo que seu prestígio e importância não nascem do céu, nem muito menos da Rede Globo, mas do vínculo orgânico com a soberania popular golpeada. Esperamos todos que o supremo enquanto instituição readquira sua inteligência.
Carta Capital