De todas as boçalidades ditas sobre a intervenção na área de segurança pública do Rio, a mais assombrosa é a que sugere que, agora, o presidente Michel Temer tem uma boa desculpa para deixar de lado a reforma da Previdência, já que ela vem se afigurando difícil, talvez impossível de ser aprovada.
Mal sei por onde começar a tratar da burrice — ou da vigarice analítica. O próprio presidente abordou a questão na entrevista exclusive que concedeu a este escriba no programa “O É da Coisa” (está aqui). Vamos lá.
Segundo dispõe o Artigo 60 da Constituição, esta não pode ser emendada na vigência de intervenção federal num estado. Ora, como romper o que parece, então, um impasse? Afinal, o país precisa da reforma da Previdência; o Rio, por outro lado, vive um caos na segurança pública. Com efeito, o país não pode ficar paralisado por causa da crise no Estado, mas o Estado não pode ficar à mercê da bandidagem porque o país precisa da reforma.
Na entrevista, o presidente lembrou duas coisas importantes. A Constituição proíbe aprovação de emenda durante a intervenção, mas não impede o Congresso de trabalhar em favor de uma proposta. Os debates não precisam ter fim. Que fale o presidente:
“Eles [Rodrigo Maia e Eunício Oliveira] vão examinar, ao longo desta semana, da outra semana, a possibilidade de votar a reforma da Previdência. Se chegarem, e chegarmos todos, à conclusão de que há os 308 votos necessários para aprovar a reforma da Previdência, o que é que eu faço? Eu faço cessar a intervenção. E aí, naturalmente, se retoma a possibilidade de votação da emenda à Constituição. A meu modo de ver, como a Constituição diz que ela não pode ser emendada durante a intervenção federal, não significa que não possa haver discussão. Emendar significa pôr um dispositivo novo na Constituição. Mas a discussão, as considerações a respeito disso, pode ser feita. O que não se pode é votar e depois colocar isso na Constituição. (…) Uma coisa não prejudica a outra. São duas coisas emergentes: a questão da reforma da Previdência, fundamental para o país, e a questão do Rio de Janeiro, igualmente emergente, porque tem repercussão não só no Rio, mas em todo o país. Então vamos conservar esses dois valores: de um lado, a intervenção; de outro lado, a possibilidade de continuar examinando [a reforma].”
Muito bem! Digamos que o governo consiga os 308 votos e que o presidente faça cessar a intervenção. Não se sabe quando isso pode acontecer. E se os problemas de segurança do Rio continuarem a pedir a intervenção. Bem, nada impede que ela seja decretada novamente, é claro, mas o presidente chamou a atenção para um outro aspecto de seu entendimento com o governador Luiz Fernando Pezão:
“Está combinado com o governador que, se eu cessar a intervenção em função da votação da Previdência, ele mantém a estrutura que foi montada pelo interventor e o próprio interventor. Então está combinadíssimo com o governador. Então eu acho que nós encontramos uma solução intermediária muito útil para o Rio de Janeiro e para o país”.
Tudo às claras
Como se vê, não há nada sendo escamoteado. Aprovar a reforma da Previdência não ficou nem mais fácil nem mais difícil com a intervenção. O ato impede a votação, mas não o trabalho político em favor da emenda. “Ah, se o presidente admite que, para votá-la, pode suspender a intervenção, então esta não era assim tão necessária”. Trata-se de um raciocínio asnal. Faz supor que uma necessidade elimine a outra.
Apelarei a medicina, com um caso em voga, para demonstrar a estupidez de tal raciocínio. Pacientes que estejam se tratando com corticoides não devem tomar a vacina contra a febre amarela. Digamos que um médico decida, por um tempo, suspender o tratamento com os corticoides para que o paciente seja devidamente imunizado. Mais tarde, oportunamente, retoma-se o tratamento com a droga se necessário. Segundo o raciocínio asinino, os corticoides, então, eram dispensáveis já que sua ministração foi suspensa para que o paciente pudesse tomar a vacina.
Não ocorre a esse raciocínio que tem os dois pés no chão e as duas mãos também que as duas coisas podem ser necessárias: os corticoides e a vacina — vale dizer: a reforma da Previdência e a intervenção federal. Ocorre que pode haver uma incompatibilidade temporal entre uma coisa e outra: a reforma e a intervenção (o corticoide e a vacina ). Faz parte da boa política e da boa medicina conciliar as necessidades, de sorte que não se precise abrir mão nem de uma coisa nem de outra.