Luciano Huck fez uma palestra no evento “Connect Samba”, em São Paulo. Às vezes, um adjunto adverbial de tempo vale por um adjunto adverbial de dúvida. Afirmou ele, quando indagado se pretende concorrer à Presidência: “Neste momento da minha vida, eu não sou candidato a nada”. Para quem gosta de língua e literatura, um prato cheio.
“Neste momento” é uma formação temporal, passageira, precária, de curta duração. Não quer dizer que não possa sê-lo, então, no momento seguinte, o que remete à dúvida ou à possibilidade, de que o advérbio “talvez” é expressão por excelência, embora este possa indicar um passo a mais rumo ao desiderato.
O “neste momento” pede o verbo no modo indicativo, o da certeza: “Neste momento, não sou”. O talvez já ensejaria o subjuntivo, que é justamente o modo da dúvida e da possibilidade: “Talvez eu seja…”.
Essa é a gramática da miséria da política. O próprio Luciano afirmou que não está se ligando a partidos. A sua proximidade seria com “movimentos”, que é uma coisa mais fluida, menos compromissada, que pode se ater a abstrações éticas sem ter de enfrentar a vida real. Exemplo rápido: no mundo dos partidos, o “Governo X” teria de enfrentar resistências organizadas à reforma da Previdência. No mundo de Luciano, bastaria, de um lado da mesa, a convicção, o que logo silenciaria o resistente em razão de sua superioridade e bonomia éticas.
Sigamos na gramática. O adjunto adverbial de tempo na sua inteireza introduz a matriz subjetiva: “Neste momento da minha vida”. Não por acaso, a quarta palavra — depois de um mero conectivo preposicional: “da” — é um pronome possessivo: “minha”. E o vocábulo seguinte é “vida”. Luciano será ou não candidato a depender desse seu “momentum”. A palavra deriva de “movere”, mover, movimento. O momento só o é se for dinâmico. Então cabe a pergunta: o que move Luciano?
A frase-símbolo, recheada de impulsos subjetivos é esta: ”Quero impactar mais na vida das pessoas e usar as ferramentas que a vida me deu para fazer a diferença”. Nada aí deixa a menor dúvida. Ele está determinado, vamos ver em que grau, a substituir a suposta lata velha em que se teria tornado o país por um bólido reluzente. E, por óbvio, revela-se o messianismo light, da bonomia, do bom papo, do homem que já conquistou o que poderiam lhe dar as aspirações materiais. Aquilo que a tantos afoba, que custa tanto esforço ao homem comum, ele já conquistou. Por isso o verbo no passado: “deu”. E quem deu? De novo, é a “vida”. As circunstâncias sorriram para ele.
Observem que, até agora, seu pleito presidencial — que é evidente — não se traduziu numa só ideia. Nem mesmo salvar o grafeno e o nióbio. Seu negócio — e a palavra vale aqui em sentido amplo — continua a ser aquele que sempre foi: “fazer a diferença”. Luciano é uma espécie de Moisés midiático: subiu o monte e recebeu as instruções. Ele e mais ninguém. Ocorre que o sumo mítico de que decorre tal formulação supõe, depois, atravessar o deserto. Por enquanto, o deserto evidente é o de ideias. De Luciano e dos outros pré-candidatos. A diferença é que a sua postulação vem embalada pela suposição de que se dá contra o establishment.
Ocorre que establishment não há mais — não o político ao menos. Foi tragado pela voragem de moralismo policialesco, que juntou num mesmo caldeirão disfuncionalidades que pediam correção, o que é típico de todo sistema, com safadeza, malandragem e sem-vergonhice. E, vamos ser claros, em “momentos” assim — os de um país, não os de Luciano —, nada mais típico, tradicional e velho do que apelar ao “salvador”, que viria, então, para nos conduzir à “idade de ouro”. São dois dos mitos da política tradicional, conforme os descreveu Raoul Girardet no livro “Mitos e Mitologias Políticas”.
Nesse sentido, Luciano é menos novo do que pensa ou do que pensam. Postulações assim só fazem sentido caso se parta da suposição de que o sistema político que temos é um artificialismo imposto contra a vontade dos brasileiros, à sua revelia. Grávidos, então, de amanhãs sorridentes que vão libertá-los, os brasileiros só estariam à espera do parteiro, que vai gerar esse novo ente coletivo.
É um caminho curto para a tragédia. Não por acaso, Luciano se encontrou “secretamente” — nem tanto se já estamos sabendo — com Joaquim Barbosa, o ministro que renunciou ao Supremo não porque não pudesse dizer lá tudo o que pensa. Ele o fez justamente porque podia. E o que tinha a dizer não era compatível com uma democracia de direito, eis o fato. A atuação do doutor no mensalão nunca escondeu o fato de que ele não entende direito, porque incompatível com a sua índole, o que é, por exemplo, “direito de defesa”. Barbosa deixou o STF e se criou o mito de que o fez porque a corte era pequena demais para seus anseios. Não! Ela era ampla e diversa demais para sua estreiteza de ideias.
Sim, acho que Luciano pensa seriamente em ser candidato. Quer dividir com a gente esse novo “deslocamento” de seus quereres, esse seu novo “momento”. Afinal, a vida já lhe “deu” tudo e, agora, ele quer “fazer a diferença”, como quem já tivesse se cansado da fase da acumulação e vê chegada a hora da fase da distribuição.
A muitos escapa que sua candidatura nos viria como uma espécie de doação, de rito sacrificial, de concessão. Ele só deixaria o conforto que a vida lhe “deu” para nos salvar.
Para encerrar: “Você descarta, Reinaldo, que alguém vindo da televisão possa se candidatar, eleger-se e fazer um bom mandato?”
Eu não! Por que descartaria? Eu não aceito é a conversa mole de, primeiro, fazer-se candidato, testar as possibilidades, só porque ele vive um “momentum”. Uma vez tornado viável, então vai nos dizer o que quer e o que pensa.
Eu não mandei cartinha para o Lata Velha. Não espero doação nenhuma de Luciano. Ele pensa o quê? Faço a ele a pergunta que faço aos outros políticos, que não têm a vantagem de se apresentar como o Moisés que já subiu o Monte para receber as Tábuas da Lei.
A política supõe atravessar desertos. Não é o cenário do homem realizado e feliz que decide dividir com a patuleia um pouco de sua realização pessoal e de sua sorte.