“Sobriedade”.
Essa palavra, creio, poderia sintetizar o discurso de Raquel Dodge, procuradora-geral da República, que tomou posse nesta segunda, com a eloquente ausência de Rodrigo Janot, que houve por bem não participar, ofendido por ter recebido o que considerou “apenas” um convite por meio eletrônico: um e-mail. Vai ver o homem das flechas de bambu preferisse tambor ou sinal de fumaça. Sóbria ela; bêbado, quando menos de poder, mostrou-se ainda ele numa cartinha de despedida.
O doutor maculou o bom senso, como de hábito, ao se colocar na condição de paladino da Justiça — nem parecia o homem que negociou indecências do Joesley Batista e companhia — e, de quebra, atingiu Shakespeare. Saiu-se com o clichê máximo: “Há algo de podre no Reino da Dinamarca”. Ele se via como Hamlet a lutar, no caso, contra a podridão do Brasil. Janot só se esqueceu de considerar que o príncipe era maluco de pedra e só provocou desastre e morte. Entre outras razões porque inspirado por um espectro. Na mosca! O então procurador-geral também se deixou mover pelo fantasma — no caso, o do autoritarismo.
Assim, dado o contexto, Raquel disse palavras tranquilizadoras. Se isso vai se refletir ou não em seu mandato, é o que vamos ver. A nova procuradora-geral tomou a sábia decisão de não tocar na expressão “Lava Jato”. Afinal, trata-se de uma fração mínima da atuação do Ministério Público Federal — e ela será, mais amplamente, chefe de Ministério Público da União. Isso quer dizer o combate à corrupção merecerá uma trégua? Claro que não. Fiquemos com suas palavras:
Quarenta e um brasileiros assumiram este cargo. Alguns em ambiente de paz e muitos sob intensa tempestade. A nenhum faltou certeza de que o Brasil seguirá em frente porque o povo mantém a esperança em um País melhor, interessa-se pelo destino da nação, acompanha investigações e julgamentos, não tolera a corrupção e não só espera, mas também cobra resultados.
Em vez do condoreirismo de baixa extração do antecessor, da estridência populista, as palavras do papa Francisco. Afirmou ela:
O papa Francisco nos ensina que “a corrupção não é um ato, mas uma condição, um estado pessoal e social, no qual a pessoa se habitua a viver. O corrupto está tão fechado e satisfeito em alimentar a sua autossuficiência que não se deixa questionar por nada nem por ninguém. Construiu uma autoestima que se baseia em atitudes fraudulentas: passa a vida buscando os atalhos do oportunismo, ao preço de sua própria dignidade e da dignidade dos outros… A corrupção faz perder o pudor que protege a verdade, a bondade e a beleza.”
Se discurso quer dizer alguma coisa — uma ordem de compromisso ao menos, já que é pelos atos que se vai avaliar o mandato de Raquel Dodge —, não se espere, pois, uma procuradora-geral leniente com a corrupção. Mas também não se aposte num MPF que hipertrofia uma única tarefa em detrimento das outras. Disse Raquel:
O Ministério Público instituído pela constituição de 1988 tem, portanto, a obrigação de exercer, com igual ênfase, a função criminal e a de defesa de direitos humanos. Deve priorizar a atuação de seus membros na medida adequada a resolver problemas graves, que inibem o bom desenvolvimento humano, como as elevadas taxas de homicídio; a violência urbana e rural, as falhas na qualidade da escola (…) e a ausência de serviços básicos de saúde onde são necessários.
(…)
Confirmo que os problemas serão encarados com seriedade, com fundamento na constituição e nas leis, porque cada membro do Ministério Público brasileiro está pronto e motivado, como sempre esteve, para exercer todas as suas atribuições constitucionais.
(…)
Em todos os lugares do Brasil e em temas muito diferentes, há muito trabalho para o Ministério Público. A Constituição nos incumbiu de zelar pela higidez do sistema eleitoral, de coibir a violência doméstica, os crimes no trânsito que ceifam tantas vidas, os homicídios e os crimes de corrupção. No Ministério Público, temos o dever de cobrar dos que gerenciam o gasto público que o façam de modo honesto, eficiente e probo, ao ponto de restabelecer a confiança das pessoas nas instituições de governança.”
E Raquel Dodge encerrou o seu discurso de posse dando a devida altitude a valores que foram rebaixados na gestão Janot. Afirmou:
Os valores que defenderemos e que definirão nossas ações estão na Constituição: muito trabalho, honestidade, respeito à lei e às instituições, observância do devido processo legal e responsabilidade”. E disse ainda pedir a Deus que, quando testada, “não hesite em proteger as liberdades, em cumprir o meu dever com responsabilidade, em fazer aplicar a Constituição e as leis.
Janot se despediu berrando o clichê de que “há algo de pobre no Reino da Dinamarca”. Raquel estreia no cargo afirmando que a resposta à podridão, numa democracia, está no respeito à Constituição e às leis.
Parece que o Estado de Direito volta a reger as relações no MPF. Que assim seja!