Com o diabo no corpo. Por Mary Zaidan – Heron Cid
Bastidores

Com o diabo no corpo. Por Mary Zaidan

21 de maio de 2017 às 11h53 Por Heron Cid
Michel Temer (Foto: Eraldo Peres/AP)

Michel Temer, 76 anos, quase 40 deles dedicados à política, não se enquadra na categoria dos desprecavidos. Não teria sobrevivido se o fosse. Muito menos na dos ingênuos, o que torna inexplicável ter se deixado enredar na armadilha de Joesley Batista, para quem Temer, na noite de 7 de março, abriu os portões do Palácio do Jaburu e do inferno, lançando nas chamas ele próprio, o seu governo e o país.

Ainda que monossilábico, o presidente da República ouviu disparates de um investigado pela Justiça, concordou com o inconcordável, postou-se como cúmplice de relatos criminosos. Nada fez.

E deu muito mais do que os irmãos Batista precisavam para selar a delação premiada junto ao Ministério Público Federal: um diálogo cifrado, no qual Joesley poderia introduzir recheio de qualquer sabor.

Ao relatar a Temer que estava de bem com Eduardo Cunha, Joesley não cita a que se refere. Não fala de compra, de dinheiro, de valores – permitindo que ele dê a sua versão aos procuradores, como os tais R$ 400 mil que teriam sido pagos pelo silêncio de Cunha, com conhecimento do presidente. Algo que não está no escopo da conversa e, portanto, não aparece na gravação.

Há mais dúvidas do que certezas nessa hecatombe provocada pela delação dos donos e diretores da JBS, a maior processadora de carnes do mundo, uma das campeãs nacionais selecionadas por Lula da Silva e Dilma Rousseff, com direito a generosíssimos recursos do BNDES e da Caixa.

No que tange a Temer é incompreensível o fato de ele ter aceitado encontrar-se com Joesley no tardar da noite, em sua residência e sem testemunhas. Ter deixado a conversa se enveredar por temas nada republicanos – ao contrário, criminosos. De não ter desconfiado da armação. Teria rabo preso? Culpa? Medo?

Na outra ponta, a delação dos Batistas abre dezenas de questionamentos – a começar pelos dadivosos termos do acordo que os livrou de qualquer pena.

Além dos ganhos de milhões no entardecer da quarta-feira, 17, dia D do vazamento da delação, com compra de dólares e manipulação de ações, objeto de cinco investigações abertas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), os donos da JBS – que estão livres, leves, ricos e soltos – acumulam discrepâncias entre o que dizem e o que deixam de dizer.

Eles são capazes, por exemplo, de afirmar com precisão cartesiana que beneficiaram 1.829 políticos via dinheiro sujo, mas não conseguem lembrar os nomes dos cinco parlamentares – apenas cinco – que teriam recebido R$ 3 milhões cada para votar contra o impeachment de Dilma, depois de recusar o pedido para comprar 30, que eles também não dizem quem são.

A JBS teria gasto quase R$ 600 milhões para financiar políticos, menos de 2% de forma lícita. Aécio Neves, enrolado até o último fio de cabelo pela gravação em que aparece pedindo dinheiro e acertando, como um meliante, a entrega das notas em espécie, teria levado mais de R$ 60 milhões. Gilberto Kassab, José Serra, Fernando Pimentel e outros 15 governadores estariam na lista de receptores.  Os Batistas dizem possuir uma bancada invejável: 167 deputados federais e 28 senadores, 179 deputados estaduais em 23 estados.

Questionado sobre um juiz que ele teria no bolso e que citara a Temer, Joesley diz que inventara esse fato ao falar com o presidente – e o dito parece ter sido convincente. Em outro ponto, o delator afirma que só com Lula e Dilma foram gastos US$ 150 milhões (mais de R$ 320 milhões). Um recorde absoluto. Ainda assim, sabe-se lá por que, as transações com os dois ex não se tornaram objeto de denúncia específica.

Michel Temer, 76 anos, político experiente, foi incisivo no pronunciamento que fez na última quinta-feira, 21 horas depois do vazamento do teor da gravação, uma hora antes de oficialmente o áudio de seu encontro com Joesley ser liberado pelo ministro-relator da Lava-Jato no Supremo, Edson Fachin.

Após ouvir a gravação, o presidente teria voltado a respirar. Como dissera pouco antes, não havia menção alguma quanto à compra do silêncio de Eduardo Cunha. Mas continha tudo o que não podia: silêncio, concordância e cumplicidade com um empresário corrupto.

No sábado, Temer voltou a se dirigir à nação. Anunciou que sua defesa protocolaria pedido de suspensão do inquérito contra ele até que a gravação – objeto de edição revelada por peritos contratos pelos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo – fosse oficialmente periciada.

Abre-se assim um novo flanco de dúvidas. Pior, capaz de ferir de morte o MPF, ao qual cabe atestar a veracidade de provas-chave de delação e de abertura de inquérito.

Algo gravíssimo caso seja confirmado. Mas, ainda que venha a servir como extintor para as chamas que Temer lançou sobre si naquele 7 de março, não conseguirá apagar a revelação de que ele já havia se rendido ao diabo.

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