Antônio Carlos Belchior, ou simplesmente Belchior, declarado morto hoje em nota oficial pelo Governo do Ceará, seu estado natal, foi dado como desaparecido em 2013. A mídia fez várias reportagens e explorou o sumiço, mais tarde explicado em entrevista pelo próprio artistas.
Na época, o então vereador de João Pessoa, Ubiratan Pereira, escreveu artigo abordando o tema do ponto de vista sociológico e psicológico, inspirado na própria obra do autor.
Bira encaminhou o texto ao Blog. Ainda bastante atual, mesmo três anos depois.
Viver é melhor que sonhar
Demorei vários anos para escrever estas linhas… Não sei se elas virão carregadas de afeto, dor, sofrimento, alegria, perplexidade… A experiência da vida me fez perceber que aquilo que marca deve ser eternizado e que o valor artístico, cultural, musical presente em uma obra, nem sempre é medido naquilo que se escuta e se assiste, mas no que esta pode representar na experiência de vida de cada pessoa.
Este conteúdo, obviamente, não é tão racional e objetivo quanto possa parecer. Talvez não caiba em resenhas, críticas, análises minunciosas sobre um artista ou uma obra. Talvez nem espaço nas redações de jornais possa ter algo que não se prenda ao imediatismo e ao processo cada vez mais massificado e homogêneo da nossa indústria cultural. Temos e teremos muitas vítimas deste processo. Algumas delas nem suportaram a dor e o sofrimento, ou talvez o vazio trazido por esta engrenagem tão complexa que tomou conta da nossa contemporaneidade.
Em meio a tantas notícias, especulações, falta de informações e ausência de respostas, surge mais uma matéria de uma revista de circulação nacional sobre Belchior. Intitulada “A Divina Tragédia de Belchior”, a matéria faz um resumo dos últimos anos de desaparecimento do artista plástico, cantor e compositor, relatando suas dificuldades financeiras, pendências jurídicas e uma suposta influência de sua atual companheira no comportamento reativo de Belchior com o mundo exterior.
Desde o primeiro momento que a mídia nacional explorou o suposto desaparecimento, fiquei angustiado com a forma da abordagem, mais interessada em apurar um “escândalo” do que em trazer de volta a carreira de um dos artistas mais impressionantesda música brasileira. Tive a reação natural de perplexidade, mas logo imaginei que seria uma imersão necessária, já que o coração selvagem que tanto teve pressa de viver, também tem o direito de se recolher.
E tem também o direito de escolher… Foi uma escolha das mais difíceis largar o curso de medicina em 1971, quando cursava o quarto ano e se dedicar ao terreno incerto da carreira artística. Em Bahiuno, uma quase biografia do compositor, Belchior anuncia com um certo desprezo sua decisão: “diz aos amigos Doutores que abandonei a escola pra cantar em cabarés” e ainda faz um paralelo com a dura ternura de Che, que também abdicou da medicina para trilhar os caminhos da revolução cubana. Esta canção sempre me chamou muita atenção pela forma escancarada em que Belchior fala das mazelas contemporâneas, ao mesmo tempo em que traz notícias suas e relata ao interlocutor que o mesmo repasse aos da província que o viu em perigo na cidade grande. A música termina com a resposta à suposta pergunta dos pais sobre onde ele teria errado e o compositor poeta responde:
“Elogiando a loucura, e pondo-me entre os sonhadores, diz que o show já começou”.
Ao longo de sua obra encontramos a voracidade sentimental em sua essência, o despojar da dor e do sofrimento inerente às relações humanas, o amor sublime e poético sem censura e a crítica à sociedade consumista, de valores invertidos e contraditórios. Tudo isso cantando não “o que a cabeça pensa mais o que a alma deseja”, sem os arrodeios que poderiam tornar sua música mais suave, romântica e talvez mais aprazível aos que querem ouvir o lado bom da vida.
Para aqueles que esperam respostas e perguntas simples, jamais irão compreender ou ajudar Belchior nesta fase enigmática da sua vida. Sua obra é o maior exemplo! Aliás, talvez nem precisemos compreender o que se passa, mas sairmos da suposta passividade de ver o retraimento que visivelmente o atinge e deixar de achar normal que isso seja encarado como fato jornalístico. Recentemente vimos grandes músicos e artistas se mobilizarem para coibir as biografias não autorizadas… Estes mesmos nomes de referência da cultura nacional deixarão a biografia de Belchior restrita ao jornalismo investigativo? Precisam fazer algo que passe da simples lamentação individual e reativa… O compositor que eternizou o bairro de Mucuripe e canta e encanta suas belezas não merece uma atenção das autoridades cearenses ou até mesmo nacionais? Talvez ajude, talvez não. Quando saímos da impotência para a impossibilidade, já demos um grande passo.
A obra não pode e nem deve consumir o autor, mesmo que sua alucinação o faça suportar o dia a dia. Não queremos que Belchior somente suporte o seu cotidiano, nem muito menos que o seu delírio seja a sua absoluta experiência com as coisas reais… Visivelmente, um conflito se instalou e isto transcende qualquer matéria jornalística, valor cultural, crise financeira, distanciamento familiar, questões judiciais ou qualquer coisa do tipo. Talvez tudo isso seja apenas consequência… Como o próprio poeta questiona em Conheço o Meu Lugar, “o que é que pode fazer um homem comum nesse presente instante senão sangrar? Tentar inaugurar a vida comovida, inteiramente livre e triunfante?”…O próprio Belchior responde a esta pergunta em Monólogo das Grandezas do Brasil: “Como uma metrópole o meu coração não pode parar, mas também não pode sangrar eternamente…” Que este sangrar então possa estancar e sua presença possa trazer de volta tudo que ele representa para milhões de pessoas, que assim como eu, tem muitas histórias com suas composições como cúmplice. Que o show possa então recomeçar e que ele próprio cante o que cantou durante tanto tempo: “Não sou feliz mas não sou mudo, hoje eu canto muito mais”!