O profeta da transposição e o milagre das águas – Heron Cid
Crônicas

O profeta da transposição e o milagre das águas

10 de fevereiro de 2022 às 13h19

Os homens de visão de longo alcance costumam ser confundidos com lunáticos. Os sonhadores geralmente desdenhados e alcunhados de bobos, fúteis…

Sempre foi assim. Em defesa própria, a mediocridade prefere o pragmatismo imediato daquilo logo à frente do nariz, o que dá pra apalpar e medir, aos riscos do desconhecido e intangível.

Quando vi as águas da transposição rompendo a barragem de São Gonçalo, em Sousa, avistei do outro lado invisível um profeta em silêncio.

Já velho em idade, fatigado pelas marcas do tempo e um rosto banhado de realização e plenitude. Não daquelas que saltam do ego, mas das que brotam da nascente do genuíno querer e lutar.

Enquanto a multidão comemorava em todo encantamento, ele mirava fixamente na explosão do brilho do encontro da correnteza com as luzes do sol a pino.

Celulares nas mãos gravavam a cena e todos, quase em procissão, faziam ode ao que, finalmente, enxergavam escorrendo nas pedras o milagre da ressurreição do Rio Piranhas.

Uns viam só água abaixo. O profeta contemplava o verde, a plantação, o colorido das frutas, o alarido da colheita, a bossa do pescador, os carros chegando e saindo, e a indústria transformando brotos em renda.

Ele, o profeta, nada dizia. Parecia em oração. Nas memórias, desaguava sua pregação solitária entre universidades, seminários, tribunas, gabinetes e o grito árido do alto-falante dos caminhões bradando até em terras estrangeiras.

Ecoava ainda os “nãos”, as greves, a ferocidade dos ribeirinhos e indígenas, o boicote dos tubarões de estados poderosos. Ardia ainda nas frontes a burocracia dos grandes, a descrença dos pequenos.

Não. Não havia mágoa. De sua face, só emergia um riso incontido, quase ingênuo de menino teimoso. O olhar, que tanta escassez testemunhou, agora era úmido, derramando uma cachoeira de emoções.

De longe, observava até não me conter de curiosidade. Desci a ribanceira, atravessei a turba e cheguei perto atraído pela aura do espírito ereto e o semblante de quem combateu o bom combate e guardou a fé.

De perto, reconheci as feições. Ainda atônito pelo transe das águas no semi-deserto, pensei que era miragem, recobrei a consciência e perguntei já sem dúvida:

– Quem é o senhor?

A resposta mansa e firme:

– Marcondes Iran Benevides Gadelha!

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