Coisas de irmãos (A Crônica de Domingo) – Heron Cid
Crônicas

Coisas de irmãos (A Crônica de Domingo)

2 de janeiro de 2022 às 16h30

Pedalava no parque sem pretensão naqueles dias sem razão. Na margem, mais à frente, a mãe e dois filhinhos. O menorzinho atravessa o caminho da bicicleta quase em cima.

Com pouca margem de manobra, o freio e o desvio. Antes, o irmão maior se joga, abraça o pequeno e o segura com força. Com toda a força.

No meio da pista, olha fixo, assustado e imóvel para o pavor do pedaleiro com o coração pela boca.

Na carinha miúda aquela feição do impulso da proteção, a firmeza do gesto incondicional de quem preserva a si mesmo e está disposto a sentir a dor para evitar a lágrima irmã.

Com o perigo passando ao lado e os corpinhos incólumes, os sorrisos brotam das faces com o nome alívio escrito em letras garrafais nas testas suadas.

Aquele riso faceiro, aquela sapeca sensação de sobrevivência e esperteza. Ainda abraçados, os olhinhos giram e conferem as rodas passando ao lado. Gargalham de susto.

Quem passou saiu carregando também um suspiro. Pelo acidente que não houve e pela memória que tomou repentinamente, como um raio, corpo e mente.

Um sorriso também rompeu os lábios do dono da magrela ao instantaneamente recordar de outros abraços e atitudes daquelas.

Na rua de casa, o irmão menor virando bicho em defesa do menino molenga contra o brigão do bairro ou naquela vez que ele próprio se fez de corajoso para enfrentar o grandão que queria bater no pequeno sardento na escola e saiu da cena com orgulho próprio nas alturas.

A roda da vida girou num segundo nas ladeiras da existência. Embalado pelo tempo, pedalou mais forte e sentiu a brisa das lembranças batendo no rosto banhado de saudade. Sem freios.

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