A democracia depende de concordarmos sobre fatos? (Por Fernando Schuler) – Heron Cid
Opinião

A democracia depende de concordarmos sobre fatos? (Por Fernando Schuler)

25 de julho de 2021 às 08h59 Por Heron Cid
VERDADES RELATIVAS - O filósofo francês: o que é ficção, o que é realidade? - Marc Gantier/Gamma-Rapho/Getty Images

A realidade importa, afinal de contas? É possível algum acordo sobre ela? É evidente que não estou me referindo à realidade que cada um deve aceitar quando tem uma apendicite e precisa operar com urgência. Neste caso, não há muito espaço para a brabeza, para a “divergência” ou a negação. Você opera ou está lascado. Mas e no debate público, em sociedades plurais, até que ponto o bom funcionamento da democracia depende de concordarmos sobre fatos básicos, independente da ideologia de cada um?

O tema é saboroso e ganhou relevância nos últimos anos com a emergência dos chamados “fatos alternativos”. Alguns atribuem seu crescimento a Donald Trump e à “nova direita”, mas isso é bobagem. O gosto pela irrealidade não tem ideologia. Funciona tanto pra quem acha que as vacinas eram uma jogada para o Bill Gates implantar microchips nas pessoas (44% dos simpatizantes do Partido Republicano achavam isso, segundo pesquisa da BBC), como para quem acha que Bolsonaro não levou aquela facada. O senador americano Ben Sasse sugeriu que, se não mais reconhecermos “fatos compartilhados” e deixarmos nossas diferenças para o mundo das ideias, a República não vai funcionar. E que vai aí um dos problemas mais agudos da democracia atual.

Pode haver um bom exagero aí, mas acho que não. É só dar uma olhada no que se passa no Brasil. Nosso desacordo parece envolver desde os temas mais triviais (Houve roubo na compra da Covaxin? Havia 12 000 ou 1,3 milhão naquela motociata?) até os mais complicados (Houve crime de responsabilidade? As pessoas tomaram vacinas vencidas?). Dias atrás me convidaram para uma entrevista sobre o escândalo da hora, envolvendo aquela propina de 1 dólar por dose da AstraZeneca, supostamente cobrada por um funcionário do governo. “Mas isto é real?”, perguntei, e logo percebi a inutilidade da questão. O assunto já dominava as redações. Uma pesquisa mostrava que 55% das pessoas que souberam do assunto acreditavam que o governo tinha culpa no cartório. O tema já havia capturado a realidade. Para todos os efeitos, ele já existia, e era este seu lado sexy.

Por vezes acho que somos a realização de uma profecia de Jean Baudrillard, o filósofo da hiper-realidade. A ideia de que a produção incessante de imagem e informação terminaria por borrar as fronteiras entre a ficção e a realidade. O mundo em que a verdade adquire um sentido funcional. Se eu acho que as eleições de 2018 foram fraudadas, e que Bolsonaro ganhou no primeiro turno, está o.k. Basta amaldiçoar quem diz o contrário. Se acho que a prisão do Lula foi uma armação do governo americano, como sugeriu o Oliver Stone, dias atrás, o.k. também. Se isso corresponde à realidade, ela mesma, bem lá no fundo, pouco importa. Importa que elas façam com que o meu mundo se encaixe. São verdades funcionais.

Jonathan Rauch lançou por agora um livro sobre o tema: The Constitution of Knowledge, ainda sem tradução no Brasil. Rauch é um jornalista prestigiado e campeão da liberdade de expressão. Sua tese é a de que a democracia liberal, além de um modelo político e econômico, supõe também um “modelo epistêmico”. Isto é, um modo de processamento das ideias e geração de consensos. O modelo foi construído a duras penas e sua melhor expressão é a clássica concepção, cunhada por John Stuart Mill, do “livre mercado de ideias”.

O ponto é que o modelo está em crise. Seus algozes são a chamada cultura troll, de um lado, pautada pelo ódio e pelas fake news, e a cultura dos “cancelamentos”, de outro, marcados pela imposição do politicamente correto. Rauch associa a primeira à direita e a segunda à esquerda, em especial aos ativistas de gênero, raça e orientação sexual, nas guerras culturais. Como solução do problema, ele sugere um exercício de ação coletiva. Nada de um grande irmão dizendo o que é ou não verdade (como parece desejar muita gente por aí), mas uma elite esclarecida. Um conjunto de instituições, envolvendo a Academia, a mídia e a liderança pública, funcionando como sistema de decantação da verdade.

Sob certas regras. Uma delas é o antidogmatismo. Isto é: permitir que as mais diversas perguntas e hipóteses sejam feitas sem que a resposta já esteja pronta na cabeça. Parece fácil, mas não é. Outra é o princípio do teste. Nenhuma hipótese tem direito de entrar na realidade sem passar por uma crítica vigorosa. O conjunto dessas regras forma a sua “constituição do conhecimento”.

A tese é boa, mas perigosa. “Nós deixamos a irrealidade falar, mas não escrever livros, ocupar as primeiras páginas dos jornais ou dizer como usar o dinheiro público.” E completa: o erro “não será criminalizado, mas ignorado”. Rauch provoca: ninguém vai dar um cartão da seguridade social ao Elvis Presley só porque um bando de malucos acha que ele está vivo.

Isto é apenas um truque. Exemplos anedóticos estão longe de expressar a complexidade dos temas em jogo no debate público. Além disso, quem seria esse “nós” que Rauch imagina deva dizer quem pode ou não escrever um livro ou receber uma bolsa? Nosso isento mundo acadêmico? Um punhado de big techs? Se Donald Trump diz que as eleições foram fraudadas, quando todos sabem que não foram, por que não bani-lo das redes? E valendo para Trump, por que não valeria para qualquer um de “nós”, que detemos hegemonia sobre centros de decisão, achamos não andar em linha com a realidade?

Há um lado pueril nisso tudo. As instituições estão cada vez menos no comando, por efeito da tecnologia, e o melhor a fazer é reconhecer que estamos diante de um problema sem solução. As pessoas podem, por óbvio, agir no plano individual. Tomar mais cuidado, cuspir menos fogo, adquirir uma visão mais cética sobre si mesmas. Já não seria pouca coisa. Mas não há, nem deve haver, uma grande saída coletiva. O mundo profetizado por Baudrillard veio para ficar. Teremos de aprender a conviver com ele. Criar anticorpos, seguir as pegadas de Nietzsche, desenhar nossos próprios critérios e nos tornar mais fortes. Risível é imaginar algum tipo de filtro ou curadoria para o debate aberto na grande sociedade.

Neste plano, a ideia de realidade explodiu. Isto já estava lá, na origem da tradição moderna. Em sua carta ao Parlamento inglês, no século XVII, John Milton comparava a verdade ao destino de Osíris, o deus egípcio esquartejado e lançado ao Nilo. “Apoderaram-se da virgem verdade, esquartejaram-na em mil pedaços e os espalharam aos quatro ventos.” Ela só será refeita no dia do juízo final, de forma que só nos resta esperar. Enquanto isso, o melhor é dobrar a aposta na velha e boa tese do livre mercado de ideias. E no cultivo de alguma dose de humildade. A aceitação de nossa própria imperfeição, o que é sempre o mais complicado.

*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748

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