O replicante de Garrastazu (por Ricardo Leitão) – Heron Cid
Opinião

O replicante de Garrastazu (por Ricardo Leitão)

8 de junho de 2021 às 20h05 Por Heron Cid

Durante a ditadura imposta pelo Golpe de 1964 um dos afazeres preferidos da máquina de propaganda do regime era distribuir fotos do “presidente” de plantão, o general Garrastazu Médici, ouvindo a transmissão de um jogo de futebol por um radinho de pilha. Uma tentativa fraudulenta de mostrar como o ditador era “um homem do povo”, enquanto centenas de brasileiros eram torturados e assassinados nos porões da repressão.

A culminância do “general do radinho” aconteceu em 1970, quando a seleção brasileira de futebol foi campeã da Copa do Mundo, no México. Seu técnico era Zagallo, que às pressas substituiu João Saldanha, demitido por ordem do ditador por ter simpatias pelo Partido Comunista Brasileiro.

Jair Bolsonaro adentra no gramado disposto a ser o replicante de Garrastazu. Não tem uma Copa do Mundo, mas terá uma Copa América, com os mesmos objetivos dos mandatários do regime militar: recorrer ao futebol para conter a impopularidade, que começa a desequilibrar o seu governo.

A Copa América será realizada de 11 de junho a 10 de julho, no Mato Grosso, Goiás e Rio de Janeiro – estados, “coincidentemente”, governados por aliados políticos do presidente – e no Distrito Federal. Antes do Brasil, dois países recusaram sediar o torneio: a Colômbia, por insegurança política e pela pandemia, e a Argentina, por causa da pandemia.

De princípio, não se cogitou que o Brasil aceitasse receber o torneio, até porque já fora sede em edição, muito próxima, a de 2019. Bolsonaro ironizou as duras críticas à realização da Copa América, em meio à pandemia descontrolada: “Será porque a transmissão (dos jogos) não é da Globo, é do SBT?”. O presidente não comentou o fato de Fábio Faria, ministro das Comunicações de seu governo, ser genro do proprietário do SBT, o apresentador Sílvio Santos.

Há outros interesses em jogo: milhões em investimentos em publicidade; venda de direitos de transmissão e de imagem; licenciamentos; promoção internacional das seleções e dos atletas. No início do ano, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), organizadora do torneio, projetava uma receita total de R$ 641 milhões versus um custo de R$ 637 milhões. Sem público nos estádios, dadas as restrições resultantes da pandemia, a receita vai diminuir e a Copa América 2021 arrisca dar prejuízo.

Ainda assim a bola vai rolar nos gramados do país. Com o Campeonato Brasileiro e a Copa do Brasil em andamento, a Copa América será disputada em estados sem tradição futebolística (à exceção do Rio de Janeiro) e seu desenrolar pode coincidir com um novo marco da tragédia sanitária nacional: mais de 17 milhões de infectados e mais de 500 mil mortos pela covid-19.

No entanto, pouco importa a Jair Bolsonaro, como pouco importaram ao general Garrastazu os mortos e torturados pela repressão. O essencial é garantir o “circo canarinho” às massas, sejam elas bolsonaristas ou não. Depois de uma anestesia coletiva a oposição voltou às ruas e quando isso começa não se sabe como termina.

Quantos infectados e mortos o torneio internacional vai provocar, com suas inevitáveis aglomerações nas portas dos estádios, em bares, em casas de amigos? O Brasil fechará as fronteiras para os milhares de argentinos, uruguaios e paraguaios que querem acompanhar suas seleções? Todos estarão vacinados? E os sistemas de transporte e de segurança? A Copa América começa dentro de quatro dias e as questões, por enquanto, estão sem respostas claras.

Alheio a tantas perguntas incômodas, o vírus cuida de sua rotina de doença, sequela e óbito. Os infectologistas mais otimistas acham que o torneio pouco acrescentará à situação já caótica da pandemia no Brasil. Os mais pessimistas acham que a Copa do replicante de Garrastazu marcará o início da terceira onda da pandemia. E, então, iremos nos queixar à Conmebol?

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