Os vigilantes e os covardes (por Felipe Moura Brasil) – Heron Cid
Bastidores

Os vigilantes e os covardes (por Felipe Moura Brasil)

2 de fevereiro de 2020 às 11h00
Fernando Gabeira, jornalista e ex-deputado federal

Depois do regime militar, foram pouquíssimos os esquerdistas, como Fernando Gabeira, que tiveram coragem de apontar os erros, imoralidades e até crimes da esquerda no poder e antes dele, porque isto era visto como “traição” ao combate à ditadura “de direita”, e a maioria preferia se omitir, ganhando afagos do público, acesso aos governantes, boquinhas, além de verbas de publicidade federal ou contratos para passar pano em veículos chapa-branca.

Depois dos governos do PT, são pouquíssimos os combatentes da roubalheira petista que têm coragem de apontar os erros, imoralidades e articulações bolsonaristas para suspender, evitar ou limitar o poder de investigações, porque isso é visto como “traição” ao combate à esquerda, e a maioria prefere se omitir, ganhando afagos do público, acesso aos governantes, boquinhas, além de verbas de publicidade federal ou contratos para passar pano em veículos chapa-branca.

A história se repete com sinal trocado, ecoando bravatas anacrônicas contra quem não está mais no poder. A mistura de analfabetismo funcional, deslumbramento provinciano, culto à personalidade, comportamento tribal, oportunismo financeiro e duplo padrão moral é o caldo cultural em que sempre bebe o poder de turno para se tornar a fonte da verdade oficial e tentar destruir os examinadores da realidade.

A verdade oficial chegou a um nível tão bizarro de mentira que hoje é um insulto responsabilizar o presidente por qualquer ‘jabuti’ (como juiz das garantias, obstáculos à prisão preventiva, limitação à delação premiada e fundão eleitoral de R$ 2 bilhões) que, em evidente cumplicidade com o Congresso, ele sanciona, em vez de exercer seu direito constitucional ao veto. Depois do ‘peidei, mas não fui eu’, agora temos o ‘sancionei, mas não fui eu’. Ou ainda: o ‘sancionei, mas não defendi’.

É inimaginável que os bolsonaristas de hoje eximissem FHC, Lula e Dilma Rousseff da responsabilidade por qualquer sanção presidencial (em razão de uma suposta estratégia na qual se deve confiar cegamente, ou de um alegado risco de impeachment desmentido pelo presidente da Câmara, responsável por autorizar o processo de impeachment); mas, quando tudo se justifica com um toque de berrante, o duplo padrão e o diversionismo são aceitos com naturalidade, para que seja mantida a pose antiestablishment no momento em que o governo se curva ao establishment.

Em um debate público polarizado entre os que demonizam e os que bajulam, a sensatez para destoar de velhas e novas militâncias requer não só argúcia, mas a força moral e psicológica que falta a surfistas de maré e chutadores de cachorro morto – alguns dos quais passaram da demonização pré-eleitoral à bajulação pós-eleitoral sem o menor pudor.

Ao contrário deles, todo vigilante contumaz, por mais sensato que seja, inclusive na constatação de acertos, é sempre tido como “traidor”. A verdadeira traição ao povo, porém, é vender-se para o poder de turno, em vez de manter a vigilância coerente que pode impedir seus abusos.

Crusoé

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